Quaestio facti. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio
Quaestio facti. International Journal on Evidential Legal Reasoning
Sección: Ensayos
2024 l 6 pp. 49-75
Madrid, 2024
DOI: 10.33115/udg_bib/qf.i6.22949
Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales
© Paula Costa e Silva
ISSN: 2604-6202
Recibido: 16/10/2023 | Aceptado: 11/12/2023 | Publicado online: 19/01/2024
Editado bajo licencia Reconocimiento 4.0 Internacional de Creative Commons
An account of events, by definition, involves an understanding of the actors 1: a prova na arbitragem comercial internacional
Paula Costa e Silva
Professora Catedrática da Faculdade de Direito
Universidade de Lisboa
paulacostaesilva@fd.ulisboa.pt
RESUMO: O que pode justificar a publicação de um texto sobre a prova na arbitragem comercial internacional? O que haverá de peculiar nesta instância de realização do Direito que explique a autonomização da matéria da prova tal quando realizada em arbitragem comercial internacional? Não será a teoria geral da prova aplicável à demonstração da realidade num certo tipo de processos —os processos arbitrais— sempre que estes respeitem a litígios comerciais e plurilocalizados?
Estas as questões centrais, em torno das quais gravitará o texto. Acentuaremos aquele que julgamos ser o factor determinante no desenvolvimento de uma praxis que, não provocando uma ruptura entre a teoria geral da prova, desenvolvida para os processos civis julgados em tribunais estaduais, e os vectores centrais da prova, tal como conhecidos na arbitragem comercial internacional: o contexto do exercício da jurisdição.
PALAVRAS-CHAVE: prova, arbitragem comercial internacional, teoria geral da prova, praxis internacional, soft law, autonomia privada.
An account of events, by definition, involves an understanding of the actors 2: evidence in international commercial arbitration
ABSTRACT: What could justify the paper on evidence in international commercial arbitration? What is so peculiar about this instance of the realisation of the law that it explains the autonomy of the subject of evidence when it takes place in international commercial arbitration? Isn’t the general theory of evidence applicable to the demonstration of reality in a certain type of proceedings—arbitral proceedings—whenever they concern commercial and plurilocalised disputes?
These are the central questions around which the text will gravitate. We will emphasise what we believe to be the determining factor in the development of a praxis that does not cause a break between the general theory of evidence developed for civil cases tried in state courts and the central vectors of evidence as known in international commercial arbitration: the context of the exercise of jurisdiction.
KEYWORDS: evidence, international commercial arbitration, general theory of evidence, international praxis, soft law, private autonomy.
«De la justificación de las creencias a que las creencias justifiquen parece haber un pequeño cambio, pero, en realidad, hay un abismo.»
Jordi Ferrer Beltrán (2011, p. 186)
A primeira pergunta que provavelmente ocorre a quem lê o título do presente texto será a seguinte: qual pode ser a relevância do locus —a arbitragem— onde a prova é feita para aquilo que a prova é? Que considerações específicas podem ser feitas numa área científica tão densa e profundamente trabalhada pela teoria geral do processo como é a da prova pela razão de se mudar a instância onde a prova é produzida e valorada? Haverá alguma repercussão do tipo de decisor —árbitro vs. Juiz— sobre a prova? Os factores institucionais —integração do decisor num corpo hierarquizado de tribunais vs. decisor que compõe um tribunal não integrado numa estrutura ou ordem— determinarão adaptações na teoria geral da prova? A teoria geral da prova, construída tendo por referência a justiça estadual, não se aplicará na arbitragem? Deverá construir-se uma teoria geral da prova em processo arbitral?
Em estudo publicado sobre a prova ilícita (Silva e Reis, 2019), pudemos concluir que quando se pergunta se uma prova é inadmissível, não podendo ser produzida ou valorada, a resposta não é influenciada pela natureza da jurisdição. O que muda —e será este o enfoque que exploraremos neste texto— é o contexto em que tipicamente decorrem a produção e a valoração da prova. E, como veremos, este contexto impõe ao árbitro que analise uma premissa que, também tipicamente, o juiz se pode legitimamente considerar dispensado de analisar. Enunciemo-lo sob a forma de pergunta: que lei se aplicará à prova em processo arbitral? Se o juiz, uma vez mais em contexto típico, considera que a lei reguladora tanto dos aspectos processuais, quanto os aspectos materiais, será a sua, a lex fori, não pode o árbitro dar esta premissa por adquirida: o contexto em que exerce jurisdição é tipicamente plurilocalizado. Tudo se vai jogar na autonomia privada ou no que for determinado na PO1 3, repositório das regras aplicáveis ao processo por acordo das partes ou por determinação do tribunal 4. Por outro lado, o árbitro enfrenta uma segunda dificuldade. Nas palavras de Johannes Landbrecht (2021, p. 39-40), «[a]s to “arbitration”, we will observe different layers. At a global level, arbitration exists as a phenomenon with a certain intellectual autonomy, but it is not coherent enough to operate as an autonomous legal order». Ainda que se pudesse aceitar a completude da ordem jurídica 5, muito dificilmente se poderia conceber a existência de uma ordem autónoma, dotada de juridicidade 6, exauriente e disciplinadora da arbitragem internacional 7. Emergindo como uma ordem não a-nacional, mas transnacional (Lalive, 1987, p. 258 et passin; Michaels, 2008, p. 447) 8, a arbitragem internacional, cuja legitimidade radicaria no conjunto das regras jurídicas de matriz estadual reguladoras deste instituto, libertaria os árbitros, órgãos decisores de uma ordem jurídica própria (Gaillard, 2008), de regras injuntivas externas ao seu sistema, transformando-os em default law-maker for traders (Stone Sweet, 2006, p. 641). A visão é sedutora como foi a de Volksgeist, erguido em razão legitimadora de um Direito avessa à autoridade do legislador, à época, revolucionário e jacobino. Mas a sua concretização enfrenta, não apenas obstáculos pragmáticos, como teóricos 9. Ocorre, porém, estar ela subliminarmente presente na arbitragem internacional, criando mais uma possível instância de legitimação para as escolhas que os árbitros terão de realizar ao longo de um procedimento.
Antes de voltarmos a este ponto, aquele que queremos desenvolver, contextualizemos o presente estudo. Isto nos permitirá prestar homenagem a Jordi Ferrer Beltrán, a quem vai dedicado. Nos dias 5 e 6 de Dezembro de 2022, aconteceu em Porto Alegre, no Brasil, o II Congresso Internacional de Direito Probatório. Como se podia observar no seu Mestre, o Professor Michele Taruffo, o Professor Jordi Ferrer Beltrán assistiu, desde o primeiro ao último minuto, a todos os trabalhos: tudo interessou a um dos mais poderosos investigadores e pensadores da actualidade, nada do que fora pensado e ali era dito por outros podia ser desconsiderado. Exemplo exemplar do adágio de que se «aprende [...] com aqueles que aprendem connosco» (Gadamer, 2009, p. 133).
A ideia da publicação de um número da Quaestio Facti consagrado à prova na arbitragem surgiu no final do painel dedicado ao tema «Prova na arbitragem. O que pode o processo civil aprender com a arbitragem? O que pode a arbitragem aprender com o processo civil?».
A singularidade das práticas que foram sendo desenvolvidas para uma eficiente produção da prova nos processos arbitrais capta a atenção do Mestre. Reforço do exemplo exemplar.
Lançado o desafio, tentaremos corresponder. Impondo-se, no entanto, uma prevenção ao leitor quanto ao que podemos prestar.
Pudemos escrever o nosso primeiro texto em matéria de arbitragem em 1988: Anulação e recursos da decisão arbitral (Silva, 1992). Desde lá até hoje, fomos tentando acompanhar os estudos que iam sendo publicados nesta área científica. Fizemo-lo pari passu com o estudo da teoria geral do processo, dos mercados e instrumentos financeiros e do direito das obrigações. É impressionante o que ocorre no domínio da arbitragem! Naquele recuado tempo, 1988, se bem que já fossem muitas as publicações periódicas relevantes, ainda era possível, em períodos de maior aperto de trabalho, folhear-lhes pelo menos os índices. Ia sendo viável conhecer as decisões proferidas pela Cour d’Appel, de Paris, e pela Cassation, identificar os grandes desafios teórico-práticos que a solução de casos através de um meio quase ausente de regras trazia consigo.
Actualmente, e ainda que nada mais se fizesse, seria provavelmente impossível saber quanto se passa. A globalização das relações económicas, indutora da escolha pelas partes de instâncias de decisão desconectadas das esferas de influência (ainda que meramente imaginadas) de qualquer uma delas, a perda de confiança, nunca enunciada mas sempre sugerida, na neutralidade dos decisores estaduais sempre que o Estado, cujas ordens jurisdicionais integram, seja parte num conflito, a expansão da arbitragem tanto naquele que seria o seu núcleo duro, a arbitragem comercial, como por novos domínios, o consequente crescimento das estruturas que albergam as arbitragens institucionalizadas, do número de intervenientes processuais, seja como decisores/árbitros, seja como advogados, a integração da arbitragem na grade curricular de cada vez maior número de instituições de ensino superior, a sua divulgação em cursos de pós-graduação, cursos de extensão, cursos de formação de árbitros e, mais recentemente, de secretários de tribunais arbitrais, tudo isto concorreu para um crescimento impressionantemente rápido da quantidade de conhecimento que, a cada dia, se produz e que, atendendo à sua tendencial universalidade 10, interessa a qualquer estudioso ou aplicador onde quer que se encontre. E, para além dos estudos que vão sendo diariamente publicados, não pode, igualmente, o aplicador ignorar as decisões que são proferidas por um conjunto muito alargado de tribunais que, com a sua jurisprudência, vão influenciando as práticas seguidas e as regras que, em momento posterior à sua prolação, são absorvidas nas diversas leis internas 11.
Se este é o panorama geral quando actualmente se enfrentam temas relacionados à arbitragem, mesmo que se deva discorrer numa zona de corte percebe-se de supetão a dificuldade da tarefa. Centrando-nos no domínio da presente publicação —a prova em processo arbitral— tem de se antecipar, logo, a impossibilidade de conhecer todos os dados que poderão ser efectivamente relevantes quando se pensam os problemas que a demonstração da realidade, sendo esta pensada como integrando tanto os factos, como o Direito que é 12, suscita em processo arbitral. A literatura sobre prova na arbitragem é absolutamente inabarcável e cresce a um ritmo impressionante. Dando, apenas, alguns exemplos, a obra de Jeffrey Waincymer, Procedure and Evidence in International Arbitration (2012), totalizava, na edição de 2012, 1348 páginas de texto, a obra Provas e Arbitragem, publicada em 2023, integra 28 textos, totalizando 597 páginas (Neto e Guandalini, 2023). Tudo isto nos dá uma certeza: no momento em que escrevemos, o texto que se publicará já não estará totalmente actualizado porque quanto foi publicado durante a sua redacção não pôde ser tomado em consideração; considerando que, após a entrega para publicação e a publicação efectiva decorrerá um lapso de algumas semanas, maior será a vetustez destas considerações.
Mas nada disto nos pode dissuadir de empreendermos a tarefa que nos dispusemos a levar por diante. Porém, e depois de fazermos referência a algumas das práticas que vieram a generalizar-se em sede de produção de prova em processo arbitral, sendo a arbitragem comercial e internacional, trataremos da prova em processo arbitral a partir de um ângulo que, talvez pela natureza do problema a enfrentar, não esteja sujeito a uma tão grande erosão: o da identificação da premissa que o juiz tem tipicamente por aproblemática e que é um dos desafios que ao árbitro se coloca. Que lei ou sistema de regras vai aplicar-se a tudo quanto respeita à prova, desde a determinação da admissibilidade da sua produção à sua valoração, passando pelos ónus objectivo e subjetivo de prova?
Já lá iremos. Comecemos por analisar algumas das práticas que se foram desenvolvendo nos últimos anos para, partindo delas, ensaiarmos uma resposta àquelas questões.
Entre as práticas desenvolvidas ao longo do tempo nos processos arbitrais, podem referir-se, porque particularmente significativas:
1) No domínio da produção da prova documental, o Redfern Schedule. O problema que, através desta técnica, se visa resolver respeita ao procedimento que deve ser percorrido para que o tribunal possa decidir o pedido de apresentação de documentos em poder da parte contrária. Sendo, muitas vezes, extremamente pesada a prova documental a produzir —isto ocorre normalmente nas arbitragens de construção, nas arbitragens de investimento e, também, em arbitragens comerciais que envolvem contratos de negociação e execução muito complexa. O Redfern Schedule não pretende aportar critério algum de decisão; ele tem a relevantíssima função de organizar, num só documento, toda a informação relevante para a decisão. O que vem a implicar que tenha normalmente cinco células paralelas por documento. Na primeira, o requerente identifica o documento que quer seja apresentado pela parte contrária, na segunda, identifica o fundamento do pedido. A terceira e quarta colunas são destinadas ao exercício do contraditório: na terceira, a parte requerida pode inscrever uma de três respostas: uma, a mais simples para o processo de decisão, que apresentará o documento, a segunda, que entende não ter o dever de o apresentar, na terceira, uma aceitação condicionada do dever de apresentação. Na quarta, a parte requerida explicitará as razões pelas quais entende não ter o dever de apresentação ou tê-lo apenas se verificada certa condição. A quinta coluna é destinada à decisão fundamentada do tribunal 13. Numa variante que introduzindo maior complexidade na decisão pode ser absolutamente adequada ocorrendo resistência forte da requerida à apresentação dos documentos que estão em seu poder, é conveniente que o tribunal alargue o número de células a fim de conferir direito de resposta a requerente e, ainda, a requerida.
Facilitando a organização dos pedidos de produção de prova documental em poder da parte contrária, o Redfern Schedule não provoca, por si, uma alteração da ordem da prática de actos processuais; o Redfern terá a informação e a ordem da sua aquisição pelo processo de acordo com o modo como for concretamente configurado. Quer isto dizer que a sequência apresentada poderá ser apenas uma sequência típica: pedido, contraditório e decisão. Porém, nada impede o tribunal de a alterar a fim de proferir uma primeira decisão liminar antes da abertura de contraditório. Se esta prática tem a vantagem de travar imediatamente pedidos ostensivamente impertinentes, pode atrasar o procedimento porquanto é necessária uma intervenção liminar do tribunal. A opção por uma ou outra estrutura procedimental terá de ser ponderada casuisticamente pelo tribunal que deve, ao longo de todo o procedimento, concorrer para a sua eficácia máxima e para a mais intensa compressão de custos que seja possível. Se estiver em causa um pedido de apresentação de um número baixo de documentos pela parte contrária, parece simples optar pelo procedimento acima descrito. Quando ocorre, como é, aliás, frequente, que sejam pedidos várias centenas ou mesmo milhares de documentos que se encontram em poder da parte contrária, deverá o tribunal fazer a descrita ponderação.
Ainda que lhe sejam reconhecidas grandes virtudes, o Redfern Schedule vem sendo criticado porque não permite abreviar os tempos de uma das fases mais longas —e de difícil decisão pelo tribunal— nos processos arbitrais, a da produção da prova documental. A crítica não pode ser acompanhada: o problema que actualmente se enfrenta na arbitragem quanto à produção de documentos não pode estar no Redfern Schedule que, como acima dissemos, não tem qualquer pretensão de trazer critérios de decisão. E, como sempre ocorre, por mais irrazoável ou dilatório que seja um pedido, ele foi deduzido e tem de ser conhecido. A parte pode sofrer sanções processuais por uso abusivo do processo, como ocorre com a imputação da obrigação de suportar todos os custos que a conduta espúria provocou; mas, se bem se verificar, estas sanções só serão aplicadas quando proferida a decisão que vem qualificar o pedido como espúrio. Entretanto ele foi deduzido, contraditado e apreciado.
Um aspecto final quanto ao desenvolvimento de uma regra prática relativa à prova documental. Esta não é, apenas, uma praxis relativa à organização de uma fase do procedimento, mas uma que interfere com os resultados probatórios: referimo-nos à extracção de inferências negativas quando a parte não coopera, ou seja, quando não apresenta os documentos que o tribunal lhe ordenou apresentasse 14. A técnica, que se encontra actualmente integrada nos instrumentos de soft law com maior aplicação, as Regras da IBA (2020) 15 e as Regras de Praga 16, pode ser entendida como uma sanção aplicável à parte não cooperante 17 ou, somente, como um modelo de decisão para superação do desconhecido que se tornaria conhecido através da apresentação de meios de prova 18, distingue-se da inversão do ónus da prova. Nesta, transfere-se para a parte inicialmente não onerada com a prova de um facto a prova do facto contrário; na inferência negativa, o facto probando através do meio de prova cuja apresentação, sendo ordenada, não foi realizada, ter-se-á por provado. Como é evidente, a descrição acabada de fazer, de tão rudimentar é quase grosseira: em rigor, não pode afirmar-se que da não apresentação de um meio de prova se infere, imediatamente, que o facto probando se verificou. Na verdade, aceitar semelhante conclusão seria desconsiderar que os resultados probatórios decorrem de uma análise não apenas analítica, mas holística da prova produzida (Taruffo, 2018). Dizer que à falta de cooperação deve imputar-se como sanção o proferimento de uma decisão que considera provado o facto probando não toma em consideração que só assim pode suceder nos provavelmente raros casos em que não apenas a prova a produzir seja a única prova possível, como que dos demais meios de prova —e, para quem assim possa aceitar, da verosimilhança dos relatos feitos pela parte no processo— não resulte incongruente o facto inferido. Este um dos cinco pressupostos do teste de Sharpe (2006) para que o tribunal possa fazer inferências negativas.
2) O Armesto Schedule, que, sistematizando as regras da IBA (2020) em matéria de produção de prova, e sendo também atinente à dedução de pedidos de apresentação de documentos, exercício do contraditório e decisão do tribunal, para além de uma diferente apresentação, integra informação não contemplada pelo Redfern Schedule 19.
Já quanto à prova pericial 20, meio de prova em que diversidades entre sistemas adversariais e inquisitórios se faz sentir de modo muito particular —indicação de peritos pela parte 21 vs. pelo tribunal— vêm sendo desenvolvidas algumas técnicas que visam criar um level playing field. Disto é exemplo o Sachs Protocol, relativo à formação do colégio de peritos que elaborará o relatório pericial 22. Klaus Sachs (2010), avança este protocolo a partir de uma posição privilegiada: será seguramente um dos árbitros mais conceituados pela sua experiência, competência e forte deontologia no campo da arbitragem internacional. O que pretende, com o seu protocolo, é fazer a mediana entre os sistemas adversariais e os sistemas inquisitoriais: reconhecendo as ineficiências da pura expert witness mas considerando a necessidade de preservar a possibilidade de interferência das partes na escolha dos peritos, propõe este Árbitro que a escolha do colégio de peritos seja híbrida. Cada uma das partes submete ao tribunal uma lista de peritos que considera terem qualificações para realizarem a perícia, cabendo ao tribunal escolher, de entre as diversas listas, aqueles que deverão responder às perguntas do tribunal. O modo como depois decorre a elaboração e emissão destas opiniões, não obedece já a regra fixa: tanto podem os peritos ter de apresentar um relatório conjunto, no qual assinalam posições convergentes, divergentes e as razões dessas divergências 23, como pode cada um dos peritos submeter o seu relatório, devendo depois elaborar relatório em que, identificando os pontos de disparidade entre o relatório por si elaborado e os demais, repondera ou mantém a sua posição. Tanto num caso, quanto no outro é comum exigir-se do perito que justifique as razões por que se deixou convencer do acerto da posição contrária à sua inicial, bem como porque assim não aconteceu. Este contraditório entre peritos permite a identificação, pelo tribunal, das zonas de incerteza nas posições que são subscritas pelos diferentes intervenientes processuais. A ulterior presença dos peritos em audiência para a cross-examination permitirá uma concentração nestes pontos, concorrendo-se, até onde for possível, para que não haja incertezas quanto aos factos probandos, somente superáveis pelas regras do ónus objectivo da prova 24.
Por que se terão desenvolvido estas práticas na arbitragem?
Supomos que o peculiar contexto em que é exercida a jurisdição. E este vem a repercutir-se em múltiplos planos.
Comecemos pelo primeiro: os árbitros não pertencem a nenhuma ordem de tribunais. Ainda que possam integrar as listas de árbitros de diversas instituições de arbitragem, com estas não têm outro vínculo que não seja o do escrupuloso dos respectivos códigos deontológicos e, quando aplicáveis, os respectivos regulamentos; integram órgãos de decisão cuja constituição ocorre com a aceitação do terceiro árbitro 25, cessam a sua função quando proferem a decisão ou, recorrendo, uma vez mais, a jargão comummente usado, o seu final and binding award. Mesmo que um processo permita a criação de vínculos de intensa proximidade entre os árbitros 26, ainda que o modo como uns e outros desempenham o seu múnus possa levar a indicações cruzadas —costuma dizer-se que o árbitro parcial pode ganhar a simpatia da parte que o indicou, mas, porque perde o respeito dos colegas, dificilmente voltará a com eles integrar um tribunal—, os árbitros não pertencem a nenhuma ordem.
Mas há mais.
Não é infrequente que, nos processos que correm perante tribunais estaduais, os julgamentos se prolonguem por diversas semanas ou meses, ocorrendo as diversas sessões de julgamento não em dias seguidos, mas em datas salteadas. A marcação do julgamento depende de factores como a disponibilidade de agenda de juiz e mandatários das partes, da disponibilidade de espaços físicos para a realização da audiência.
Se bem que esta seja uma prática pouco virtuosa —ainda que possa ser gravada, a audiência deve ser contínua, pois não será a mesma a memória de um decisor que intercala a produção de prova, que não é perene, relativa a um conflito na produção de prova de outros tantos processos, contando com a possibilidade de retomar a prova produzida, ouvindo uma gravação; este modo de produção da prova dificulta a sua rigorosa avaliação crítica, exercício que, não prescindindo de um juízo analítico pressupõe, na enunciação do resultado de provado ou não provado, uma valoração holística—, há um custo que tipicamente não lhe está associado: o custo de deslocação de um conjunto de intervenientes processuais.
Sendo típica a constituição do tribunal arbitral por árbitros provindos de diferentes jurisdições —sendo, de acordo com as boas práticas e o princípio da neutralidade, o árbitro presidente de jurisdição diferente da das Partes—, a realização da audiência implica custos de deslocação. E, para além dos árbitros, também não é comum que os mandatários das partes tenham todos o seu domicílio profissional no lugar onde decorre a audiência 27. Se se pensar que as partes tendem, na arbitragem internacional institucionalizada, a escolher uma instituição arbitral não localizada no país das suas sedes, tudo se agudiza, pois mesmo intervenientes processuais como as testemunhas e as partes, quando estas pretendam prestar declarações ou delas seja requerido depoimento, deverão deslocar-se para estarem fisicamente presentes na audiência. Identicamente se passam as coisas com os peritos, sejam estes peritos legais ou peritos técnicos. A esta já extensa lista, acresce a presença frequente de tradutores, estenógrafos, técnicos informáticos. Por último, o valor do espaço onde irá decorrer a audiência. Tudo isto tem uma consequência imediata: a audiência demanda custos elevados. Alguns poderão ser comprimidos através do recurso de meios de comunicação à distância (Silva, 2022d), outros são inelutáveis 28.
Uma vez que um dos deveres do tribunal arbitral é a minimização máxima dos custos do procedimento, atendendo a que vários intervenientes deverão estar deslocados para a realização da audiência, esta é normalmente concentrada. Apesar de a sua duração variar na medida da prova a produzir, variando esta em razão da complexidade da matéria probanda —exemplificando, em processos em que se discutam alegados defeitos de uma obra, realizada normalmente por diferentes empresas, tendo eventualmente cada uma a sua especialidade, como uma ponte de diversos quilómetros, uma auto-estrada, um hospital, um aeroporto, uma linha de alta velocidade, um complexo urbanístico, uma central de produção de energia, a prova a produzir é tipicamente muita e são, igualmente, muito variados os meios de prova a mobilizar, atendendo à dificuldade probatória dos factos probandos—, partes, mandatários e tribunal concentram a realização deste acto em dias de calendário seguidos.
A compatibilização de calendários dos diversos intervenientes processuais e a sua deslocação e permanência em lugar diverso daquele que é o seu domicílio profissional por vários dias torna-se possível porquanto a data da audiência (e a sua duração estimada, estabelecida em função das indicações que as partes dão ao tribunal) é fixada na primeira reunião das partes com o tribunal, ocorrendo esta já depois de requerida a arbitragem, mas ainda antes de apresentados os actos de postulação. Sendo o calendário elaborado por acordo entre todos os intervenientes, todos sabem, com uma antecedência adequada, que deverão adjudicar as suas agendas à realização de uma concreta audiência, num concreto processo numa dada altura (normalmente, nove meses após a primeira reunião das partes com o tribunal uma vez que, para além dos actos de postulação, toda a prova deverá ser produzida antes da audiência, sendo esta reservada ao exercício do contraditório sobre prova não perene). E, aqui, há já uma diferença significativa entre o modo de produzir prova em arbitragem internacional e o modo como esta normalmente é produzida perante os tribunais estaduais: os elevados custos de um processo arbitral que envolva uma plêiade de intervenientes impõe uma continuidade óptima da audiência.
Uma outra medida que concorre para a disciplina da produção de prova em audiência prende-se com a circunstância de o tribunal discutir com as partes, normalmente já não na PO1, a primeira ordem processual emitida pelo tribunal logo no início do procedimento, mas na pre-hearing conference, que comummente ocorre com uma antecedência de duas a três semanas sobre a audiência, o modo de alocação dos tempos de audiência a cada uma. Na alocação dos tempos, o tribunal começa por atribuir tempos globais a cada uma das partes; esta alocação não é aleatória pois, no momento da pre-hearing conference, já todos os intervenientes processuais estão em condições de conhecer aprofundadamente o processo, podendo antecipar, mesmo que num cálculo relativamente grosseiro, o tempo de estimam necessário para exercer o contraditório. Alocados os tempos globais, resta determinar se as partes querem proceder à sua distribuição antecipada por interveniente —v. g., quanto à testemunha A, dez minutos para direct, seguidos de x, y ou z minutos de cross, com dez minutos de redirect; para o perito B, vinte minutos de apresentação do relatório, 120 minutos de cross, 15 minutos de redirect—, se farão uso do tempo global com distribuição em tempo real —1200 minutos para cada parte, que distribuirá este tempo como entender pelas diferentes intervenções que espera vir a ter em audiência—, se pretendem um sistema híbrido. Os tempos indicados deverão ser tendencialmente cumpridos, sendo certo que o tribunal tem poderes para proceder a alterações durante a audiência quando isto se mostre absolutamente justificado.
A disciplina e cumprimento dos tempos alocados a cada uma das partes em audiência é crucial para que se cumpra, não só o calendário da audiência, mas, também, o calendário global do processo, não podendo perder-se de vista que o incumprimento do prazo para proferimento da decisão determina a caducidade da convenção, com a inerente responsabilidade civil dos árbitros. Voltaremos a este ponto adiante.
Uma nova diferença que pode identificar-se no modo de produção da prova em processo arbitral quando se toma por referência o que tipicamente ocorre na praxe dos tribunais estaduais prende-se com a determinação do momento e da sequência de produção das diferentes provas. Não é incomum que o tribunal acorde com as partes que, v. g., uma prova pericial técnica ou legal seja produzida logo após ter sido requerida a arbitragem —nestes requerimentos o requerente identifica logo os factos essenciais e as pretensões e o requerido indica eventual pedido reconvencional e excepções, como ocorre comummente nos sistemas em que as partes têm de pedir leave a um tribunal para litigarem— e constituído o tribunal, mas antes da submissão das postulações (statement of claim e statement of defence). Porque ainda antes da submissão da postulação em termos exaurientes o tribunal já pôde discutir os contornos essenciais do litígio em audiência com as partes, poderá exortá-las a procederem à produção imediata —que não antecipada pois esta é produzida, não antes do tempo certo, mas no tempo que, sendo incomum enquanto tempo certo, no concreto caso, é o tempo certo (Silva, 2012)— de uma prova que normalmente só seria produzida num momento mais tardio. Assim ocorre quando a prova se presume determinante para orientar as partes, quer na dedução mais rigorosa das suas pretensões e defesas, quer, até, na celebração de acordo 29.
Por outro lado, também não é incomum que o tribunal proponha às partes ouvir, em blocos, as testemunhas ou os peritos que deponham sobre os mesmos factos ou matérias. Deste modo, a prova sobre conjuntos de factos é produzida de modo concentrado e não intervalado pela produção de prova que releve para outros conjuntos fácticos.
As técnicas de produção de prova que estamos a descrever não são desconhecidas dos sistemas processuais civis. Nestes sistemas, seja qual for o papel exactamente reservado ao juiz, compete-lhe disciplinar a produção da prova e a audiência, cabendo-lhe, ainda, adequar o procedimento às circunstâncias do caso. Nesta adequação se envolve a determinação dos momentos em que, em dado processo, a prova deve ser produzida. Não é, porém, e pelo que podemos captar da realidade —apesar da ausência de dados empíricos fiáveis sobre esta matéria—, frequente que os tribunais estaduais exerçam estes poderes, alterando quer o momento, quer a ordem que, nos diplomas processuais civis, surgem como os adequados ao desenvolvimento da actividade probatória. Ainda que estes diplomas lhe confiram este poder, os juízes tenderão a não lançar mão dos mesmos. Nada disto se pode estranhar. A flexibilização do processo estadual não é tão pregressa que permita afirmar-se a existência de um corpo de magistrados formado já com a vigência de tal coordenada. A repercussão da alteração de paradigmas, como ocorre quando se abandona o princípio da legalidade das formas e se acolhe uma regra de adequação ou flexibilização (Silva, 2011), leva décadas a ser assimilada pelo decisor enquanto corpo institucional de decisão. Só o juiz que, desde o seu primeiro contacto com um sistema processual, o conheceu informado por certos vectores integrará na sua prática judicial as técnicas em que tais vectores se concretizam. Para além disso é fundamental que quem o forma, já não como jurista, mas como magistrado, tenha igualmente conhecido o sistema na sua nova morfologia e com os seus nupérrimos paradigmas. Regras com as potencialidades do artigo 139.VI do Código de Processo Civil brasileiro, de 2015, nos termos da qual ao juiz incumbe «... alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efectividade à tutela do direito» têm o seu período de carência.
Uma outra diferença, ainda procedimental, mas, pensamos, com impacto na apreciação holística da prova que há pouco referíamos, situa-se já no lapso temporal que decorre entre o encerramento da audiência e o momento do proferimento da decisão arbitra. É comum os árbitros reunirem assim que se encerra a audiência, aproveitando a circunstância de se encontrarem todos fisicamente num mesmo lugar para começarem a trocar as suas percepções acerca da prova produzida. Sendo as gravações imediatamente disponibilizadas, estas percepções poderão ser, também imediatamente, confrontadas com o registo. Faltará, ainda, aguardar pelas alegações finais (post-hearing briefs) que, não sendo de apresentação necessária ou compulsória, são usualmente previstos como acto terminal de convencimento do tribunal pelas partes em arbitragem internacional. Estas têm duas funções típicas, uma delas conhecida da prática estadual, outra menos comum nesta justiça. Em primeiro lugar, servem as alegações para que as partes, retomando as suas pretensões e defesas, aleguem ter provado os factos essenciais que as fundamentam. Mas estes PHB servem, ainda, uma outra função: exactamente porque é comum que o tribunal reúna uma vez encerrada a audiência, é também comum que, logo nesse momento, os árbitros identifiquem questões sobre as quais querem ainda ouvir as partes. Nesta medida, os PHB servem, igualmente, para que as partes respondam às questões que lhes são dirigidas pelo tribunal finda a produção de prova (a eficácia desta técnica pressupõe que o tribunal conheça aprofundadamente toda a prova produzida antes da audiência que, normalmente, é apenas destinada ao exercício de contraditório sobre prova não perene já que, também tipicamente, as testemunhas depõem por escrito sendo a sua comparência no julgamento, a par do que ocorre com a prova pericial técnica ou legal, destinada ao exercício de contraditório). Porém, e apesar de evidente relevância dos PHB, já que nestes o contraditório pode realmente centrar-se nas questões identificadas pelo decisor como as críticas para a decisão (será mais eficaz um contraditório centrado naquilo que um decisor que, nesta fase processual, conhece as alegações e a prova, indica como crucial do que aquele exercido pelas partes, sem qualquer pista do tribunal, uma vez que estas tendem, por uma jurisprudência de cautelas, a espraiar-se por tudo quanto, do seu ponto de vista, é essencial ou pode ser que o seja), decorrerá um curto lapso temporal entre a audiência e a decisão (não pode perder-se de vista que o tribunal arbitral tem prazos peremptórios para proferir a sua decisão sob pena de caducidade da convenção de arbitragem; desta resulta, para além de uma evidente denegação de justiça, porque assim é, a emergência de responsabilidade civil para os árbitros pelos danos causados às partes com fundamento na violação dos deveres que aceitaram cumprir). A proximidade temporal entre a produção da prova e a sua valoração tende a diminuir o preenchimento de lacunas de conhecimento por erosão da memória do efectivamente ocorrido.
A quarta diferença, e esta com um impacto extremo, prende-se com o tipo de decisor que assiste ao julgamento e que ulteriormente apreciará a prova produzida a fim de responder às questões de facto. Razões de compressão de custos 30, aliadas à explosão da litigiosidade e à crescente especialização das diversas áreas científicas em que o Direito, arte da pragmática 31, se desenvolve, e à impossibilidade de formar, em curtos espaços de tempo, magistrados que assegurem o exercício da função jurisdicional nos tribunais estaduais, determinaram uma universal supressão do tribunal colectivo como o decisor competente para a audiência e a enunciação das respostas à matéria de facto assente em prova não perene. Ora não é este o normal modo de julgar nos tribunais arbitrais. Ainda que haja registo da audiência, quer por transcrição, quer em gravação, o tribunal arbitral exerce as suas competências tipicamente como colectivo. Isto vem a significar que a prova não é apreciada apenas por um decisor, mas por um colectivo de árbitros. Se for possível afirmar que três observadores se apercebem de mais detalhes do que se desenrola à sua frente do que um só, será possível afirmar que a prova evanescente produzida perante um tribunal arbitral, porque colectivo, tem maior probabilidade de ser integralmente apreendida do que se o fosse perante um decisor singular.
Até ao presente momento deste texto, temos enunciado algumas das peculiaridades da produção de prova em processo arbitral. Se estas podem vir ser ponderadas pelos sistemas adjectivos de justiça estadual, supomos que sim. Ainda que, algumas delas, sejam dificilmente transponíveis —como ocorre com a colegialidade do decisor—, outras são de fácil aplicação. Tudo estará na demonstração da sua eventual maior eficácia por referência à eficácia das práticas seguidas nos tribunais estaduais.
Porém, o problema que verdadeiramente nos interessa afrontar é um outro e está directamente relacionado com o tema do painel. «Prova na arbitragem. O que pode o processo civil aprender com a arbitragem? O que pode a arbitragem aprender com o processo civil?»
No prefácio à obra colectiva Provas e Arbitragem. Teoria, Cultura, Dogmática e Prática (Neto e Guandalini, 2023), publicada em 2023, escreve Eduardo Talamini:
«[a]qui é arbitragem: as coisas são diferentes!» «A arbitragem não é um mundo paralelo!» Essas duas frases foram retiradas de discursos verdadeiros, e às vezes podem ser ouvidas em um mesmo diálogo. Retratam, com algum exagero, um dos grandes desafios do estudo da arbitragem, [...]. Como enquadrar a arbitragem na teoria geral do processo sem desnaturá-la? Por um lado, há o risco de se pretender transportar para a arbitragem todos os institutos, parâmetros e práticas do Poder Judiciário. [...]. Por outro lado, há o risco oposto de se ignorar a essência de processo da arbitragem [...]. A arbitragem desenvolve-se de modo processual —e assim se insere na teoria geral do processo. O processo arbitral só para em pé porque os seus partícipes, até inconscientemente, se valem dos elementos estruturais e funcionais mínimos e básicos do modelo processual, desenvolvido historicamente, sobretudo, na justiça estatal... (p. 13).
Árbitros e juízes fazem a mesma coisa: todos resolvem conflitos que lhes são postos pelas partes, todos exercem jurisdição porquanto esta se caracteriza pela resolução, com eficácia heterónoma e força de caso julgado, de um litígio 32. Porque todos exercem jurisdição, todos têm a sua actuação guiada pelos princípios fundamentais de um processo que as matrizes constitucionais qualificam como equitativo ou devido processo legal: igualdade e contraditório 33.
A restrição dos princípios fundamentais a estas duas coordenadas, igualdade e contraditório, é absolutamente crítica para que a solidez de uma decisão arbitral não seja contaminada pelos padrões, ainda que constitucionalmente estabelecidos, para as decisões proferidas por tribunais estaduais. Um exemplo típico, o da motivação das decisões 34. Ainda que a decisão proferida por tribunal estadual deva, por imperativo constitucional, ser motivada 35, não é evidente e necessária a transposição desta bitola relativa ao conteúdo de uma decisão proferida por um juiz para aquela que é proferida por um árbitro. Trata-se de garantia acoplada à decisão proferida pelo decisor em concretos espaços jurídicos.
E nem todos os espaços jurídicos têm as mesmas bitolas. Basta lembrar que a decisão proferida sobre a matéria de facto pelo júri não tem de ser motivada como bitola idêntica àquela que rege a fundamentação da decisão, seja de facto, seja de direito, proferida por um juiz. Não obstante as diferentes modelações do dever de justificação da decisão proferida por um júri 36, a conformação destas decisões com os princípios de um Estado de Direito, entre eles, o do due process of law, ainda que não ausente de zonas problemáticas, há-de aceitar-se como indiciariamente demonstrada. A relativamente recente decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, proferida no caso Taxquet (Taxquet v. Belgium, nº 926/05, ECtHR, 16 November 2010) é outro forte indício daquela conformação. Nesta decisão, o Tribunal afirmou que a conformidade de uma decisão com o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não exige a sua fundamentação —«the Convention does not require jurors to give reasons for their decision» (p. 26)— bastando, para o preenchimento da garantia de um fair trial, que o réu e a comunidade, em geral, consigam compreender o veredicto 37.
Vem isto a significar que da cláusula geral do due process não resulta, como concretização necessária, a garantia da motivação de uma decisão. Esta é pragmaticamente orientada quer à diminuição das pré-compreensões do decisor e ao convencimento das partes, como à facilitação da impugnação da decisão, já que a parte pode limitar o seu ataque ao sentido da decisão, atacando os fundamentos concretos da decisão e não todos e quaisquer fundamentos que a pudessem justificar. Mas a possibilidade da sua ausência sem inerente nulidade do acto de decisão é um indício forte de que a fundamentação de uma decisão se não reconduz ao núcleo duro das garantias processuais fundamentais; estas são apenas igualdade e contraditório. Esta linha de argumentação poderá, porém, ser derrotada se se entender que, ao fundamentar, logo, ao justificar a sua decisão, estabelece o decisor um contraditório com as partes. Não nos parece, porém, que este seja o caminho a percorrer.
Mas o problema não morre por aqui. Saber qual o núcleo das garantias fundamentais, ainda que estas sejam restringidas a igualdade e contraditório, não é tarefa fácil. Duas perguntas permitem compreender a modelação que uma e outro podem ter.
Quando se impõe que o decisor trate as partes com igualdade, o que quer isto dizer? Que as deve tratar de modo formalmente igual? Ou que deve tratá-las com igualdade substancial? Responder positivamente no sentido da primeira interrogação significa que, na sua interacção com as partes, não possa o decisor atender a eventuais desigualdades substanciais, de modo a igualar as partes na sua intervenção processual; uma resposta positiva à segunda questão significa que o decisor deve atender a desigualdades substanciais para, através dos seus poderes assistenciais e de gestão processual, criar um estatuto de igualdade das partes no processo.
Vejamos como se pode modelar o contraditório. Quando se afirma que o contraditório é uma garantia processual indeclinável, o que se quer dizer? Que o decisor não pode decidir antes de ter assegurado o contraditório entre as partes e às questões que entre elas sejam debatidas? Ou que o decisor não pode decidir uma questão, ainda que de conhecimento oficioso, sem ter conferido contraditório prévio às partes? Lembre-se que a vedação das decisões surpresa consistiu numa evolução da compreensão do contraditório que, no seu núcleo duro originário, a não compreendia explicitamente.
Numa rápida, mas, como acabámos de verificar, ainda assim problemática conclusão: só há dois princípios indeclináveis, igualdade a contraditório. Só estes comprimem todo aquele que exerce a sua função jurisdicional, árbitro e juiz. Isto significa que um e outro deverão estar conscientes desta limitação da cláusula do devido processo legal ou do processo equitativo quando contactam com decisões proferendas ou proferidas de acordo com direito diferente do seu e que conhece princípios constitucionais conectados à realização da justiça estadual pelos tribunais do foro.
Porém, e indo agora ao ponto que nos interessa sublinhar, árbitros e juízes actuam em ambientes muito distintos.
Uma vez que o tema do painel é a prova, façamos duas perguntas para que a radical diferença de ambientes surja como evidente. Quando as partes requerem a produção de uma prova, que regras relevam para que o decisor determine qual o regime aplicável à produção da concreta prova produzida? E, numa segunda interrogação, qual a regra que determinará se a prova requerida é material ou substancialmente lícita?
Quais as diferenças radicais nestes dois casos, diferenças estas que podem ser transpostas para tantas questões quanto aquelas que classicamente compõem os capítulos dos manuais de teoria geral do processo no título (ou, mais realisticamente, no ou nos volumes) dedicados à prova?
A resposta é uma: enquanto o juiz dispõe de regras primárias que lhe são pré-dadas, o árbitro não tem estas regras. Por muito abertas que aquelas se apresentem, por muito grande que seja a amplitude dos poderes discricionários do decisor, razões históricas levaram a que o juiz conte com um conjunto mais ou menos alargado de enunciados que lhe são pré-dispostos e que são as suas bitolas de decisão. O árbitro enfrenta um sistema extremamente lacunar, onde poucas bitolas lhe são antepostas. A ser verdadeira a observação de James Q. Whitman (2008, p. 10) de que «[w]ell designed factual proof rules always also provide a measure of moral Comfort», compreende-se a dificuldade da missão do árbitro. Esta pode ser diminuída com a remissão para sistemas de regras como as IBA Guidelines on the Taking of Evidence (IBA, 2020) ou para as Regras de Praga (The Prague Rules, 2018), em que se acentuam os poderes inquisitoriais do decisor 38; porém, todas elas são soft law. Se aceites pelas partes, ao abrigo da sua autonomia privada e na medida em que fechem acordos quanto ao regime aplicável à prova, desde a sua admissão até à sua valoração e aos graus de prova exigidos para uma decisão, terão facilitado a tarefa do decisor. Mas nem este, nem as partes, sempre se lembram, quando adoptam a PO1, de esclarecer estes pontos. E só quando as questões se tornam candentes é que o árbitro se apercebe da necessidade da sua resolução à luz de um sistema que intenta identificar.
Acresce ser aceso o debate quanto à possibilidade de o árbitro, mais intensamente em arbitragem internacional, menos intensamente, ainda que de algum modo, em arbitragem interna, possa recorrer a um qualquer sistema jurídico de base 39. O confronto de posições entre Pierre Mayer e Jan Paulsson, a que já fizemos referência no início deste texto, tornou-se clássico. Rejeitando, aquele, aceitando, este, a existência de um sistema de base, certo é que o árbitro fica imediatamente colocado perante este dilema quando tem de se perguntar acerca da regra que deverá aplicar para decidir uma questão, nomeadamente, em matéria probatória.
Mas as dificuldades do árbitro ainda continuam.
Mesmo que se aceite que o árbitro possa recorrer a regras de um sistema de base 40, que sistema deverá ser este? O da sede do tribunal? O da lei aplicável ao contrato? O do lugar da provável execução da decisão? E será que a resposta depende da natureza das regras pelas quais se pergunta? Exemplificando e sempre no domínio da prova, será que se se perguntar qual o modo de produção da prova testemunhal poderá o árbitro recorrer às regras —ou aos vectores delas decorrentes— do sistema processual da sua sede, devendo já quanto à matéria do ónus da prova ou da determinação da licitude material de uma prova recorrer ao sistema jurídico da lei aplicável ao contrato?
Veja-se que esta segunda instância de questões, que tem na sua raiz a distinção entre regras adjectivas e regras materiais (Born, 2021, p. 291 e seguintes), não é estranha ao exercício da jurisdição nos tribunais estaduais. Também estes podem ter de decidir conflitos plurilocalizados. Estes começam por deles demandarem resposta à pergunta «sou eu internacionalmente competente para decidir esta causa»? Sendo o juiz internacionalmente competente para decidir a causa, aplicará a lex fori às questões processuais; no entanto, se ao contrato for aplicável direito estrangeiro, o parâmetro para a decisão de questões substantivas involucradas na matéria da prova deverá ser este ordenamento estrangeiro. Talvez não seja, porém, tão frequente a necessidade de aplicação, pelo juiz, de um direito diverso do seu quanto aquilo que ocorre em arbitragem internacional.
Será que estas diferenças de ambiente implicam que os sistemas processuais de matriz estadual não possam repensar as suas soluções a partir daquelas que vêm sendo práticas arbitrais virtuosas, porque eficazes, em matéria probatória? E significará, por seu turno, esta diferença de ambientes que não possam os árbitros olhar para as soluções encontradas pelos sistemas processuais para enfrentarem algumas das lacunas com que permanentemente se confrontam?
A resposta é, neste nosso estádio de conhecimento, negativa. A premissa de que partimos é que árbitros e juízes fazem a mesma coisa: decidem conflitos, com submissão ao princípio do processo equitativo ou devido processo legal. Por mais que possam ser —e, realmente, são— diferentes os ambientes em que árbitros e juízes tipicamente exercem a sua função, nada disto invalida que não devam atentar nas respectivas práticas para poderem interrogar-se acerca do seu modo de fazer. Para isto, deverão conhecer o que uns e outros fazem. Por isso são tão importantes encontros que reúnam árbitros e juízes. Enquanto isto, terá a doutrina de trabalhar de modo igualmente transversal, perguntando-se será possível a construção de uma teoria geral da adjudicação. Apenas a integração de todos os operadores permitirá construir uma visão verdadeiramente holística do que é inerente ao exercício da jurisdição. Para que, sem se ignorarem as diferenças específicas, se não destruam as pontes. O desafio implicado na tentativa de construção de uma linguagem comum, no final das contas, de uma verdadeira teoria geral da adjudicação, é ingente; mas é um desafio, não uma impossibilidade.
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1 Título tomado de empréstimo a Aron (1958).
2 Título tomado de empréstimo a Aron (1958).
3 O conceito de procedural order, porque não consegue recortar com nitidez, e face ao conceito de award, os casos que cobre, vem a ser de difícil aplicação. O problema não é meramente conceptual: com efeito, se a PO pode dispensar a fundamentação, o princípio é o de que um award tem de ser fundamentado. Mais relevante, porém, é a determinação da natureza do acto praticado pelo tribunal para se saber se ele é ou não susceptível de ser impugnado e executado. Para uma aproximação às dificuldades de delimitação destes conceitos entre eles, com várias referências, Gupta e Kunstyr (2022).
Independentemente destas dificuldades, que não podem ser atalhadas porque o tribunal qualifica o acto para, assim, tentar que lhe seja aplicável um ou outro regime, certo é que um dos actos processuais mais relevantes é a PO1, na qual se vão determinar as regras e, desejavelmente, os princípios que vão reger o processo arbitral.
Veja-se um modelo de PO1, proposto pelo próprio Banco Mundial, que poderá ser seguido em arbitragens de investimento em ICSID (2016).
Em UNCITRAL (2016) podem encontrar-se as Notes on Organizing Arbitral Proceedings.
Em ICCA (2015), pode encontrar-se uma checklist de itens que devem constar da PO1 de acordo com os parâmetros da ICCA.
4 Cfr. Silva (no prelo)
5 Seria impossível entrar neste debate nesta circunstância. Não por ser a questão subjacente irrelevante —o problema da completude e da autonomia da ordem arbitral coloca-se ainda com maior acuidade e consequência do que o da completude da ordem jurídica radicada em fontes de matriz institucional porquanto da resposta que se lhe puder dar resulta, não apenas a afirmação do fecho da ordem arbitral, como, e também por causa desse fecho, o desprendimento da arbitragem-procedimento de determinação do que deve ser em face do que é, de qualquer ordem jurídica de matriz estadual— mas porque este texto, ainda que entronque neste problema, o terá por referente subliminar: subjacente ao problema que trabalharemos pode dizer-se estar a incompletude e a ausência de autonomia de um sistema, dotado de normatividade institucional forte, aplicável à produção e valoração da prova.
Para o debate relativo à autonomia de uma ordem arbitral transnacional, Mayer (2001) e Paulsson (2008). Tomámos posição neste debate em Silva (2022c).
Para o problema da completude da ordem jurídica, entre muitos outros pares possíveis, o que foi travado entre Alchourrón e Buligyn (1971), em especial, VII. The problem of closure e IX. Completness as a Rational Ideal, onde se podem encontrar as premissas da construção deste par, e Atría (2019). Depois, Bulygin (2019).
6 Neste contexto, ainda que directamente a propósito da lex mercatoria, Ralf Michaels (2008, p. 449) escreverá: «The main issue is not the existence of a lex mercatoria, in the past or in the present. It is the theoretical possibility of a law merchant, and whether it can be considered to be law».
7 Em 1963, Goldman (1963, p. 479) escrevia a propósito da criação de um sistema de regras autónomas reguladoras da arbitragem internacional, que dispensaria o recurso a regras de conflitos de matriz estadual: «On peut également objecter que de toute manière ce droit commun des nations ne saurait être complet; ainsi, on ne voit pas comment la capacité de contracter pourrait être uniformément réglée, ou la durée de la prescription, ou selon un exemple que nous évoquions plus haut, l’étendue de la garantie des vices cachés dans un contrat de vente».
8 Sendo a expressão transnacional equivalente à ideia de «truly international», «really international» (Lalive, 1987)
9 Por último, e de forma muito compreensiva, veja-se a crítica à possível identificação de uma ordem jurídica transnacional, que poria, com as suas regras próprias, limites inderrogáveis à tomada de decisões por árbitros, (Kleinheisterkamp, 2023).
10 Adiante e já no domínio da prova, apontaremos algumas especificidades do contexto em que tipicamente ocorrem os processos arbitrais. Por ora, com a expressão relativa universalidade queremos notar que a arbitragem, para ser verdadeiramente competitiva, tem de viver num contexto de regras, mesmo que mínimas, suficientemente comuns e insensíveis aos lugares em que ocorre para que seja atractiva. A singularidade dos sistemas processuais de base estadual, talvez explicáveis com a evolução secular não desligada da própria evolução e concepção das diferentes estruturas que exercem a jurisdição, tem um efeito dissuasor dos extraneus. Estes sentem-se em desvantagem por não conhecerem os sistemas internos como os intraneus. Neste contexto, basta recordar que há, neste momento, um número muito significativo de leis nacionais de arbitragem que têm como parâmetro a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (2011), aprovada pela Assembleia Geral, na 112.ª Reunião plenária, ocorrida em 11 de Dezembro de 1985. Lê-se nesta resolução que «[c]onvencida de que a implementação de uma lei modelo sobre arbitragem aceite por Estados com sistemas jurídicos, sociais e económicos diferentes contribui para um desenvolvimento harmonioso das relações económicas internacionais» (p. 7) e de que «a Lei Modelo, juntamente com a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras [...] e as Regras de Arbitragem da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional [...] recomendada pela Assembleia Geral, na sua resolução 31/98, de 15 de Dezembro de 1976, contribui significativamente para a implementação de um enquadramento jurídico uniforme com vista a uma resolução justa e eficiente de litígios emergentes de relações comerciais internacionais» (p. 7), a Assembleia Geral «[p]ede ao Secretário-Geral que transmita, aos Estados e aos centros de arbitragem e a outros órgãos interessados, tal como as câmaras de comércio, o texto da Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, juntamente com os trabalhos preparatórios da 18.ª sessão desta Comissão» (p. 7) e «[r]ecomenda que os Estados tenham em consideração a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional, tendo em vista a uniformização da lei sobre processos arbitrais e as necessidades específicas da prática da arbitragem comercial internacional» (p. 7). Conseguiram, deste modo, as Nações Unidas criar um quadro de regras comuns que, sendo soft law, foram seguidas pelos legisladores nacionais. Como contraponto, recorde-se que, no contexto europeu, só recentemente, em 2011, foi possível adoptar, também como soft law, um documento elaborado sob a égide da ELI/UNIDROIT, que servirá como guia para os legisladores nacionais e que traz Model European Rules of Civil Procedure (2020).
11 Dando apenas um exemplo, o direito português foi directamente influenciado, na determinação do modo de composição do tribunal arbitral, quando as partes são complexas ou plurais, pela doutrina do acórdão BKMI et Siemens v Dutco, proferido em 7 de Janeiro de 1992 pela 1ère Chambre Civile, da Cour de Cassation.
12 Adiante, quando tratarmos das peculiaridades do contexto em que julgam os tribunais arbitrais, veremos que, no tipo de frequência em arbitragem internacional, deverá ser feita prova da existência e vigência do direito aplicável.
13 Veja-se o Redfern Schedule for Document Requests empregue no caso Glencore Finance (Bermuda) Limited v. Plurinational State of Bolivia, PCA Case No. 2016-39, disponível em https://jusmundi.com/en/document/other/en-glencore-finance-bermuda-ltd-v-plurinational-state-of-bolivia-procedural-order-no-4-tuesday-27th-march-2018.
14 Sobre este ponto específico, Dias e Gomides (2023) e Amaral (2018).
15 Cfr. artigos 5 e 6 das IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration (IBA, 2020)
16 Cfr. artigo 10 das Rules on Conduct of the Taking of Evidence in International Arbitration (The Prague Rules) (2018).
17 Afirmando que a inferência negativa adere à conduta omissiva da cooperação devida pela parte como uma sanção, Gaillard e Savage (1999, p. 698). Cfr. Silva (2022e).
18 «When the mind, therefore, passes from the idea or impression of one object to the idea or belief of another, it is not determined by reason, but by certain principles, which associate together the ideas of these objects, and unite them in the imagination» (Hume, 2002).
19 Veja-se a tabela utilizada por Mélanie Riofrio Piché para o ilustrar em https://academic.oup.com/icsidreview/article/38/2/302/7235126?login=false
Sobre o Armesto Schedule for document production, cfr. Piché e Jalles (2020).
Armesto Schedule: The Armesto Schedule: a Step Further to a More Efficient Document Production (). Procedural Order Model (https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/wp-content/uploads/sites/48/2020/04/Procedural-Order-Model.pdf), p. 12
20 Para uma análise abrangente dos diversos problemas suscitados pela prova pericial na arbitragem internacional, consultar o texto de Sachs (2010).
21 Atendendo a que se vem consolidando a prática de os actos de postulação assumirem a forma e o modo de memorials e não de pleadings, ocorre que os relatórios periciais são juntos pelas partes com as suas primeiras postulações, o statement of claim e o statement of defence. Esta prática não é inócua quanto à natureza e intensidade persuasiva da prova produzida: ainda que esteja em causa a supressão do gap informativo do tribunal quanto a matérias altamente técnicas e que não fazem parte das suas típicas instâncias de conhecimento, sendo o perito indicado pela parte e ainda que possa ter de declarar que desenvolverá o seu trabalho com independência e de acordo com as melhores práticas, será sempre alguém que aportará uma versão da realidade favorável à parte que a indicou, sendo qualificado como uma expert witness. Por outro lado, porque o objecto da perícia é configurado pela parte, esta tenderá a dirigir ao perito apenas as perguntas —e a fornecer-lhe apenas a informação— que lhe permitam responder de modo a sustentar a postulação. Estas decorrências do momento e do modo de intervenção dos peritos concorrem, perante a natural disparidade de posições técnicas, para a criação de uma tão intensa tensão entre os diferentes relatórios periciais que, sendo esta a prova relevante para a demonstração de dado facto, o tribunal dela pouco pode extrair, decidindo por aplicação das regras sobre distribuição do ónus da prova. Se não é expectável, nem virtuoso, que sejam criadas regras que induzam a expressão de opiniões unânimes pelos peritos que têm posições fundamentadamente opostas, é desejável que se diminuam as causas que podem concorrer para a disparidade. Isto se consegue maximizar quando os peritos acedem à mesma informação e respondem a uma grelha comum de perguntas. Apesar desta uniformização da informação e do objecto dos relatórios, a identidade de posições não fica assegurada porquanto os diversos peritos podem partir de premissas científicas diferentes. Estas deverão, porém, ser explicitadas nos diversos relatórios para que possam ser sindicadas, quer pelos demais peritos em contraditório, quer pelas partes e pelo tribunal, eventualmente através do seu assessor técnico.
Para uma caracterização entre pleadings e memorials, cfr., entre muitos outros documentos possíveis e disponíveis on-line, ACICA (2020). Acentuando a influência das culturas de partida quando se enfrenta a opção, em arbitragem internacional, de deduzir a postulação através de submissão de memorials ou de pleadings, Singarajah (2020) e Cywicki e Grose (2017).
22 O Sachs Protocol foi proposto por Klaus Sachs em 2010, na conferência annual da ICCA, no Rio de Janeiro. Partindo da verificação empírica de que os sistemas que assentam na alternativa de escolha dos peritos pelas partes ou pelo tribunal não representam o modo óptimo de constituir um colégio de especialistas em que, simultaneamente, o tribunal deposite confiança ou em que as partes reconheçam elevada especialização, Klaus Sachs propôs que a competência para a escolha dos peritos fosse repartida: num primeiro momento, caberá às partes a elaboração de uma lista de peritos que reúnam as qualificações técnicas requeridas pelos factos a provar sendo esta lista submetida ao tribunal que, num segundo momento, deverá escolher os peritos a partir da lista que lhe foi submetida. Haverá sempre uma cláusula de salvaguarda: o tribunal pode recusar os diversos peritos indicados na lista em decisão fundamentada, desde logo se entre eles e os membros do tribunal existir um qualquer conflito relevante que justifique o seu afastamento.
23 Cfr. artigo 5(4) das IBA Guidelines on the Taking of Evidence (IBA, 2020).
24 Em nota anterior e agora no texto, recorremos, apenas por facilidade de expressão, ao conceito de ónus da prova. Ainda que consideremos que este ónus, critério de decisão a aplicar quando a decisão acerca de um facto é a de não provado —ónus subjectivo— ou quando o juiz se encontre numa situação de incerteza quanto ao juízo a proferir quanto a um facto probando —ónus objectivo da prova—, conviva no sistema com os deveres de instrução do tribunal e com o princípio da aquisição processual —toda a prova produzida será valorada, independentemente da relação entre a parte que a apresenta e aquela que é beneficiada pelo facto provado, não clamamos pela morte do que veio a qualificar-se como um ónus. No final das contas, temos um juízo desfavorável a quem aproveitaria o facto probando. Mesmo que a expressão na sua integralidade possa ter zonas de penumbra quando se aprofunda a noção de ónus enquanto situação jurídica dotada de hibridez, há um relativo consenso quanto ao seu campo operativo e à sua eficácia.
Sobre a inutilidade do conceito de ónus da prova, Nieva-Fenoll e Pereira (2022). As razões sumariamente indicadas permitem apreender os nossos pontos de discordância face à posição expressa por estes Autores. Veja-se, em resposta, Mitidiero (2020).
25 Por facilidade de expressão, referimo-nos ao tipo de frequência em que o tribunal é composto por três árbitros. Podem, porém, as partes —ou a instituição sob cuja égide decorre o processo arbitral— optar por —ou determinar— um qualquer outro número. Se a maioria dos sistemas impõe que este número seja ímpar, outros consideram admissível a constituição de tribunais com número par de árbitros. O que deverá considerar-se na escolha do número de árbitros que compõem um tribunal será, por um lado, a expressão económica da causa —causas de baixo impacto são decididas por árbitro único e em procedimentos com rito abreviado, como ocorre, por exemplo, na CCI, assim se concorrendo para um procedimento que seja cost efficient—, a complexidade do litígio e a garantia de igualdade das partes em processos com múltiplos compartes. Cfr. artigos 7.º a 10.º das ICC Rules of Arbitration (1 de Janeiro de 2021) (ICC, 2021); PT Ventures SGPS S.A. v. Vidatel Ltd., Mercury - Serviços de Telecomunicacões S.A. and Geni SA, ICC Case No. 21404/ASM/JPA (C-21757/ASM).
26 São várias as razões que explicam este resultado. A circunstância de as decisões serem tomadas com a intervenção de todos os árbitros que integram o tribunal —ainda que o presidente tenha competência para proferir decisões de mero expediente, é prática que o não faça sem antes consultar os seus colegas, disso dando conta na própria decisão— para além das audiências —normalmente, duas— é também prática que as principais decisões sejam tomadas depois de debate presencial entre todos os árbitros. O estar conjunto num mesmo sítio permite que os árbitros vão tendo momentos de convívio que transcendem a sala onde decorre a audiência. Com frequência, o lugar da audiência não coincide com o domicílio de nenhum deles: a proximidade na distância induz os tempos comuns.
27 Ainda que o tribunal tenha uma sede, a sede, apesar de ser um lugar físico, não coincide necessariamente com o lugar onde devem ser praticados os actos processuais. Mais do que um conceito com relevância geográfica, o conceito de sede do tribunal tem relevância jurídica, determinando aspectos tão relevantes quanto a competência para a anulação da decisão arbitral —para a acção de anulação são competentes os tribunais da sede da arbitragem—, a competência para a prestação de auxílio ao tribunal arbitral —caso seja, v. g., necessária a cooperação dos tribunais estaduais para a produção de uma prova que a parte não aceite produzir voluntariamente perante o tribunal arbitral, serão competentes para esta cooperação os tribunais da sede do tribunal arbitral—, a competência para suprir condutas das partes sem cuja prática não pode ser exercida jurisdição pelo tribunal arbitral, como ocorre quando uma das partes não indica o seu árbitro ou os árbitros indicados não nomeiam um árbitro presidente.
28 Tratando deste mesmo argumento a propósito do julgamento pelo júri, Lessa (2020).
29 Esta técnica de produção de prova, orientada à obtenção de acordo ou à celebração de outro negócio processual autocompositivo da acção, como a desistência do pedido ou a confissão do pedido, é menos perfeita do que aquela que se encontra acolhida no artigo 381.II do Código de Processo brasileiro, de 2015. Esta regra permite a produção antecipada de prova quando a prova a produzir seja susceptível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução do conflito. Ainda que seja possível a produção antecipada de prova perante tribunal arbitral, a necessidade de constituição de um tribunal para este efeito pode revelar-se irracional atendendo aos custos implicados. Por outro lado, ainda que a arbitragem seja institucionalizada e a concreta instituição preveja a figura do árbitro de emergência, a produção antecipada de prova não integra as competências deste decisor já que não são razões de urgência a justificar a sua produção.
30 Não pode perder-se de vista, quando se discutem os problemas inerentes aos sistemas estaduais de justiça e aos modelos e estruturas de decisão, que todo o debate se trava num cenário em que o princípio do utilizador pagador fica aquém das necessidades de financiamento destes sistemas Silva (2010).
31 «There is no source of friction among men and no possible controversy, however complicated or unforeseen, that is not only susceptible of a defined judicial solution, but in fact demands it. No statement demonstrates so adequately the eminently practical nature of law or its full and perfect relation to life…» (Rabello, 2004, p. 11-12).
32 Sobre a qualificação da arbitragem como jurisdição, Silva (2009).
33 Ainda que os sistemas processuais sejam informados por outros princípios estruturantes como, v. g., o dispositivo, o inquisitório ou instrutório, etc., todos estes princípios são susceptíveis de modelação ou, até, de compressão pelo legislador infra-constitucional. Basta pensar no princípio dispositivo: se ele tipicamente caracteriza o processo civil, fica afastado do processo penal e é fortemente atenuado no processo de trabalho.
34 Sobre a motivação como elemento que permite desqualificar a decisão enquanto acto negocial, cfr. Silva (2022a).
35 Sobre a evolução nos diversos espaços jurídicos e momentos históricos do dever de motivação das decisões, Cruz e Tucci (1987), remetendo-se, em especial, para o que o Autor escreve na página 91 e seguinte, lugar onde analisa a relevância da regra constante do texto constitucional italiano (o artigo 111, §1, onde se dispõe o dever de fundamentação de todos os provvedimenti giurisdizionali). Compreensivamente sobre a fundamentação, ainda é fundamental a obra de Taruffo (2014), da qual existe tradução portuguesa, de Daniel Mitidiero, Rafael Abreu e Vitor Paula Ramos, publicada por Marcial Pons, em 2014, e com uma relevantíssima introdução de Michele Taruffo; nela, o Autor, que afirma ter escrito a obra no verão da sua vida e a Introdução à edição brasileira já no seu outono, dá notas de actualização do estudo original.
36 Desde uma simples resposta de guilty ou not guilty, proferida como juízo global no final da produção de prova e sem identificação analítica de factos, questões ou meios de prova, até uma justificação, não apenas da resposta dada pelo júri a cada questão que, em sistema de lista, lhe é dirigida pelo juiz, como dos concretos meios de prova que determinaram o seu convencimento. Sobre a fundamentação ou justificação das decisões proferidas pelo júri, Thaman (2011).
37 É extremamente relevante a concurring opinion do juiz Jebens, uma vez que nela o decisor sublinha a perturbação causada pela instabilidade da jurisprudência do Tribunal, reflectida em alterações provocadas por essa jurisprudência nas legislações de Estados submetidos à sua jurisdição, logo depois tornadas obsoletas perante nova e conflituante jurisprudência do mesmo Tribunal.
38 Sobre as Regras de Praga, Silva (2022b).
39 Sobre este problema, e de acesso livre, LSE (2012), Mayer et al. (2019), Pinheiro (2017), Theofrastous (1999), Akinleye-Martins (2022), com múltiplas referências.
40 Sobre a lei aplicável à admissbilidade e ónus da prova na arbitragem internacional, cfr., Garnett (2022, p. 76 e seguintes); Born (2021, p. 2873 e seguintes), von Mehren (1995).