Quaestio facti. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio
Quaestio facti. International Journal on Evidential Legal Reasoning
Sección: Ensayos
2023 l 5 pp. 95-123
Madrid, 2023
DOI: 10.33115/udg_bib/qf.i5.22908
Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales
© Daniel de Resende Salgado
ISSN: 2604-6202
Recibido: 22/05/2023 | Aceptado: 21/06/2023 | Publicado online: 29/06/2023
Editado bajo licencia Reconocimiento 4.0 Internacional de Creative Commons

FUNDAMENTOS À ADMISSIBILIDADE DA METAPROVA NO PROCESSO PENAL*

Daniel de Resende Salgado

Mestre em Processo Penal pela USP.
Procurador da República
danielrsalgado@uol.com.br

RESUMO: O presente artigo parte da premissa de que a metaprova objetiva reforçar ou debilitar a força inferencial de uma determinada prova, influenciando seu nível de fiabilidade. O caráter subsidiário e periférico da metaprova indica que a sua relevância deriva da relevância da prova, particularidade que influi na análise de sua admissão no curso do procedimento probatório.

PALAVRAS-CHAVE: prova, metaprova, fiabilidade, metarrelevância, admissibilidade.

FUNDAMENTALS FOR THE ADMISSIBILITY OF META-EVIDENCE IN CRIMINAL PROCEEDINGS

ABSTRACT: This paper is based on the premise that meta-evidence aims to reinforce or weaken the inferential strength of a given evidence, influencing its level of reliability. The subsidiary and peripheral character of the meta-evidence indicates that its relevance derives from the relevance of the evidence, a particularity that influences the analysis of its admission in the course of the probationary procedure.

KEYWIRDS: evidence, meta-evidence, reliability, meta-relevance, admissibility.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO: O OBJETO DO PROCESSO E O OBJETO DA PROVA.— 2. METAPROVA: OBJETO E ESCOPO.— 3. A ADMISSIBILIDADE DA METAPROVA: 3.1. A presunção de fiabilidade: o perigo de desborde na cadeia de provas. 3.2. A relevância como filtro para admissibilidade da prova e a metaprova: 3.2.1. A metarrelevância e a admissibilidade da metaprova. 3.2.2. A valoração provisória da prova para admissão da metaprova. 3.2.3. O contraditório para admissão da metaprova.— 4. RESUMO CONCLUSIVO.— REFERÊNCIAS.

1. INTRODUÇÃO: O OBJETO DO PROCESSO E O OBJETO DA PROVA

As proposições fáticas constitutivas da infração penal e erigidas como alicerce à imputação (também qualificadas no presente texto como proposições fáticas principais) são o conteúdo substancial do processo ou o seu objeto (Badaró, 2013, p. 76-77) 1. Se somente em relação a proposições/hipóteses/enunciados fáticos 2 é possível se falar em verdade ou em falsidade, é em face dessas proposições que versará a atividade probatória.

Portanto, em regra, a atividade probatória recai sobre os enunciados juridicamente relevantes ao processo. Se assim o é, as proposições fáticas principais, além de se caracterizarem como o objeto do processo, por óbvio também são o objeto da prova.

No contexto jurídico, a prova embasa (confirma ou explica) empiricamente uma proposição sobre o fato. A relação probatória é uma relação entre o conteúdo proposicional de hipóteses, em que uma enuncia o elemento de prova e a outra a proposição a ser provada (thema/factum probandum). Dessarte, um enunciado é uma prova (enunciado probatório) quando serve para confirmar um outro enunciado (enunciado fático) (Carnelutti, 2005, p. 20; Taruffo, 2009, p. 259). Em assim sendo, e tendo a averiguação da verdade como uma das funções institucionais do processo penal 3, a atividade de formação dos elementos de prova precisa ser viabilizada, até como um direito conferido às partes contra os riscos de erro, por um processo inferencial confiável (Haack, 1997, p. 212) e por fontes de provas individualmente sólidas, ou, em outros termos, fiáveis 4.

Assim, quando o investigador se depara com uma prova 5 em potencial, as duas questões que imediatamente surgem são aquelas relacionadas à relevância e à fiabilidade da fonte de informação (Schum, 2016, p. 278). Deveras, quanto mais fiável uma prova individual, mais força terá e mais incisivamente influenciará na combinação e na convergência das massas de provas, de modo a aumentar ou a diminuir, apoiar ou negar, a probabilidade de que venha a ser aceita como verdadeira a hipótese fática integrada ao processo com a imputação ou algum enunciado a ela alternativo 6.

Percebe-se, em assim sendo, que a fiabilidade em si de uma prova é gradacional. Mister, dessa forma, avaliar o nível de solidez individual necessário para que uma fonte de prova possa ser potencialmente apta a confirmar, ou ajudar a confirmar, uma hipótese (Vázquez, 2015, p. 102). Em outros termos, o nível de fiabilidade é o resultado de inferências direcionadas à comprovação gradual de que a prova, a partir da análise de determinados atributos 7, possui qualidade epistêmica. Isso implica dizer que a avaliação da solidez da prova não conduz a uma conclusão categórica e dual, no sentido de a prova ser ou não fiável, mas sim se a prova é suficientemente fiável 8.

Não se pode ignorar, ademais, que na apreciação da fiabilidade de uma prova deve-se considerar a forma como ela interage com outras provas, uma vez que provas individualmente fracas ou pouco fiáveis podem ter sua solidez robustecida quando cotejadas com o conjunto probatório (Haack, 2014, p. 43). Deveras, as provas de baixa qualidade epistêmica podem ser úteis, desde que o julgador compreenda a força que lhes deve ser atribuída (Pardo, 2010, p. 367, n. 6).

Em assim sendo, a solidez individual de uma prova pode ser constatada pela compatibilidade entre os dados probatórios, a partir da relação lógica, de apoio mútuo e multidirecional entre os enunciados. Se, por exemplo, durante a atividade probatória, for confirmada determinada informação contida em uma fonte de prova testemunhal com uma segunda fonte de prova da mesma espécie, por óbvio há uma interferência, para além da elevação do grau de justificação da hipótese ou da força inferencial da prova, na fiabilidade da primeira fonte probatória. Nesses casos de pluralidade de prova, o juízo de fiabilidade individual está conectado à análise probatória conjunta, porquanto a coerência entre as provas, a apontarem na direção de uma mesma hipótese, é passível de conferir, uma à outra, para além da maior força inferencial dada por seu conjunto, um grau de fiabilidade mais elevado. Da mesma forma, a ausência de compatibilidade de uma em relação à outra pode dar ensejo à diminuição da qualidade individual da prova. Inclusive, é nesse aspecto que Marcus Stone (1988, p. 69) aduz que algumas vezes pode parecer que não há nada de errado com uma prova em si mesma considerada até ela vir a ser vergastada por outra aparentemente mais fiável.

Por outro lado, a autenticação, a consistência e a precisão 9 oriundas do processo de formação da própria prova garantem, por si só, a sua fiabilidade. Nos casos de meios de prova com suportes eletrônicos, por exemplo, quanto maior a conjunção entre determinados dados e seus metadados ou entre aqueles e seus códigos de certificação, elementos estes auxiliares, complementares e integrativos à própria prova, maior a autenticação e a precisão e, em consequência, mais elevado o nível de fiabilidade.

Em suma, a solidez individual ou qualidade epistêmica de uma prova pode ser constatada tanto pela produção de outra prova dirigida ao enunciado fático principal, a estabelecer uma relação de coerência entre uns e outros enunciados probatórios, como durante o específico processo de formação ou de validação do dado probatório relevante à demonstração do enunciado fático.

Mas não só. A fiabilidade da prova pode também ser constatada por meio de outra atividade probatória dirigida à própria prova.

Com efeito, o tema probatório (aquilo que se pretende conhecer por meio da prova) é o que constitui o objeto da prova, seja ele referente ao enunciado fático constitutivo da infração penal, seja relativo a enunciados diversos (Guzmán, 2018, p. 31) 10 que não guardam relação direta com o objeto do processo, ou seja, enunciados que não se projetam diretamente sobre as hipóteses fáticas principais. Dessarte, o objeto da prova pode ser um enunciado diverso da proposição que constitui o objeto principal do processo (Guzmán, 2018, p. 32), como aquele que permite inferência sobre a fiabilidade de uma dada prova corroborativa ou infirmativa da proposição constitutiva do tema principal do processo 11. Portanto, a prova pode se projetar sobre outra prova.

Dito de outra forma, uma prova, além de se direcionar às proposições fáticas consideradas o objeto do processo, também pode incidir sobre os próprios enunciados probatórios, visando, assim, a lhes conferir maior fiabilidade. Isso porque nem sempre as provas produzidas diretamente para justificar a hipótese acusatória (enunciados corroborativos) ou para desvirtuá-la (enunciados infirmativos) (Muñoz Sabaté, 1967, p. 213) são suficientes para conferir ao julgador a segurança necessária à tomada de sua decisão. Se assim o for, o objeto da prova, ou seja, o enunciado a ser provado é, em termos abstratos, mais amplo do que o objeto do processo (Gascón Inchausti, 1999, p. 21), não se confundindo com este.

Em resumo, o objeto da prova pode se referir tanto às proposições sobre os fatos integrantes da infração penal como a outros enunciados secundários 12, periféricos 13 ou auxiliares 14. O último caso, no qual enunciados periféricos constituem o objeto da prova, pode ser justamente aquela que permite formular inferências em relação à solidez ou qualidade de enunciados sobre a própria fonte que oferece conhecimento a respeito das proposições fáticas objeto do processo, tendo, dessa forma, função acessória, em uma clara atividade de prova sobre prova ou, na expressão que se prefere por melhor denotar seu caráter instrumental, metaprobatória 15. É prioritariamente sobre a análise da admissibilidade da metaprova 16, subespécie de prova, que este texto se debruçará. Antes, contudo, mister buscar definir o objeto e o escopo do que ora se denomina metaprova.

2. METAPROVA: OBJETO E ESCOPO

Helio Tornaghi (1991, p. 429-430 e 435), ao tratar da acareação, aparentemente concorda com Manzini ao considerar que o elemento destinado a avaliar a fiabilidade de uma prova é um mero ato instrutório informativo e não um meio de prova 17. Contudo, não há dúvidas de que no processo penal há meios de prova utilizados para demonstrar algo que afeta substancialmente, seja de forma positiva ou negativa, a qualidade epistêmica ou fiabilidade de outras provas que versam sobre verdade ou a falsidade dos enunciados constitutivos da infração penal (Gascón Inchausti, 1999, p. 10-11).

Na realidade, não há distinção ontológica entre a metaprova e a prova em si. Uma prova de outra prova não deixa de ser prova: a proposição conclusiva do tipo «E* é prova para que se creia que E é uma boa prova para a proposição P», ou seja, é razoável crer em «P» com base em «E» em razão do reforço à sua fiabilidade dado por «E*», não deixa de se encontrar inserida no âmbito daquilo que se entende como prova. O elemento que confere à metaprova um cariz distintivo das provas em geral é o seu escopo de influenciar especificamente na solidez individual ou na qualidade epistêmica de outra prova.

À vista disso, durante a atividade probatória é possível produzir outros elementos objetivos que não tenham relação com a hipótese histórica do processo, mas que possam servir, a partir do reforço (ou não) de sua qualidade epistêmica, para aumentar (ou não) a força inferencial da prova. Não versa a metaprova diretamente sobre hipóteses fáticas que integram o objeto do processo. O seu objeto são os enunciados (probatórios) colocados ao conhecimento do julgador, mas, diferentemente da atividade probatória ordinária, a metaprova não se encontra projetada diretamente sobre os enunciados fáticos constitutivos da infração penal. Visa, na realidade, a robustecer ou a debilitar a eficácia de outros enunciados considerados, dentro do contexto processual, como provas. Assim, pode-se seguramente afirmar que a metaprova se relaciona diretamente com a aferição da fiabilidade de uma prova específica: como verificaremos, a sua relevância é derivada da relevância de outra prova.

A metaprova, enfim, é passível de auxiliar no enriquecimento da solidez da prova individualmente considerada, conferindo-lhe força inferencial diversa da que teria caso a prova sobre outra prova não fosse produzida (Gascón Inchausti, 1999, p. 44). Possui importante papel epistêmico de incidir sobre a qualidade de um específico meio ou fonte da qual provém o elemento de prova, a ponto de, ao influenciar no seu grau de fiabilidade individual, impactar no processo inferencial realizado no contexto da valoração probatória.

Conclui-se, dessa forma, que o objeto da metaprova é a própria prova, enquanto seu escopo é auxiliar na análise do grau de fiabilidade de uma prova relevante ao acertamento dos fatos.

3. A ADMISSIBILIDADE DA METAPROVA

Existe a possibilidade genérica de propositura, admissibilidade e produção de metaprova, conferindo-lhe tratamento similar a qualquer outra diligência probatória. Basta, para tanto, propor em momentos processuais oportunos a produção de meios de prova cujo escopo seja aumentar ou diminuir a qualidade de outras provas. Nesse aspecto, a sua admissão ou a sua denegação estariam sujeitas, em princípio, ao controle ordinário a que se submetem as provas em geral. Inclusive, essa afirmação é coerente com a conclusão de que a metaprova só se distingue das provas em geral em face da sua finalidade e de seu objeto.

Ressalte-se que a prova como atividade se desenvolve em contextos teoricamente distintos 18. Nessas etapas, há formas diversas de raciocínio probatório 19. Assim, por exemplo, na etapa da admissibilidade, a concepção do raciocínio probatório está alicerçada na aferição da relevância da prova proposta e de sua compatibilidade com as regras de exclusão, em um juízo dual, pautado no tudo ou nada (Ávila, 2018, p. 125). Na fase da produção há outra concepção de raciocínio desenvolvida a partir da tática de exploração dos meios de prova que as partes realizam no curso do processo, sob o contraditório, para obtenção de elementos de prova.

Já no contexto da valoração há outra estrutura de raciocínio, a admitir graduação, por ser etapa de avaliação da força inferencial que os elementos probatórios relevantes já disponíveis no processo têm em si mesmos e em relação a determinado enunciado fático: aceitar que «p» está justificado é um estado que se alcança por meio de uma sequência de etapas encadeadas de raciocínio, a partir de um desenho inferencial-indutivo estruturalmente voltado a guiar a deliberação judicial à averiguação da verdade, que conecta elementos probatórios aportados ao processo à conclusão probatória, tendo por ligame as generalizações empíricas. Como bem aduzem Terence Andreson et al. (2005, p. 71), no momento valorativo os elementos de prova se vinculam por meio de uma cadeia de inferências com vários links, sendo o primeiro justamente o de fiabilidade (na acepção dos autores, credibilidade) 20.

O certo, entretanto, é que, como a metaprova versa sobre proposições fáticas distintas daquelas que integram o objeto do processo, nem sempre a sua necessidade é conhecida a priori pelos atores processuais, podendo surgir, por exemplo, no curso da instrução processual, durante a produção da prova. Contudo, na medida em que novos enunciados fáticos não incidam sobre a delimitação do objeto da controvérsia, a alegação extemporânea de proposições que afetem a qualidade das provas produzidas não vergasta garantias processuais. Em outros termos, uma vez definidos os lindes do objeto do processo no momento da propositura e do recebimento da peça acusatória, caso sejam descobertos aspectos fáticos diversos daqueles inicialmente inseridos na imputação, estes não integrarão o feito para fins de prova sem a devida alteração da hipótese acusatória a ser viabilizada pelo aditamento à denúncia (Badaró, 2013, p. 153). A prova (metaprova) de enunciados que porventura afetem a qualidade e, em consequência, a força inferencial de determinada prova, entretanto, não viola o princípio acusatório, na medida em que essas proposições não incidem na delimitação do objeto da controvérsia (Gascón Inchausti, 1999, p. 139).

Nessa perspectiva, no processo penal espanhol, por exemplo, o direito à propositura e à admissão da prova possui momentos processuais bem estabelecidos, mas o regime de preclusão é flexível quando se trata de metaprova 21. Fernando Gascón Inchausti sustenta, com base no art. 729, § 3º, da LECrim, que, ao contrário das provas sobre as circunstâncias da infração penal, é possível a propositura e admissibilidade de metaprova em qualquer fase do juízo oral 22, particularmente após o desvelamento de fatos que coloquem em dúvida, por exemplo, a fiabilidade da prova testemunhal produzida (Gascón Inchausti, 1999, p. 143) 23. Em linha análoga, o art. 507, comma 1, do Código de Processo Penal (CPP) italiano, permite a produção de novos meios de prova, se absolutamente necessários, mesmo fora do momento processual adequado à sua propositura/admissão.

Já o diploma processual penal brasileiro, apesar de estabelecer certas normas preclusivas quanto à proposição probatória 24, dispõe ser possível a produção de prova extemporânea, desde que a necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na própria instrução, conforme reza o art. 402 CPP. Entretanto, diferentemente de alguns outros sistemas 25, a legislação brasileira não prevê especificamente as possibilidades de proposição de metaprova. O mencionado dispositivo do Código de Processo Penal brasileiro, contudo, pode ser utilizado como um dos pilares legais para sustentar a atividade metaprobatória durante ou em momento posterior à instrução probatória ordinária, reabrindo-a.

As páginas que seguem serão destinadas a sistematizar algumas particularidades sobre a admissibilidade da metaprova, em especial quando a sua necessidade surge posteriormente à admissão das fontes de prova e à produção da prova sobre as hipóteses fáticas em que descansa a demanda dos autos, mormente quando se sabe que a atividade pré-processual possui uma maior liberdade para a busca de fontes de prova (Salgado e Queiroz, 2004, p. 312; Saad, 2004, p. 246-247), inclusive metaprobatória, e de elementos de informação. Antes, porém, mister discutirmos, mesmo de forma perfunctória, a presunção de fiabilidade da prova, baldrame sobre o qual a análise da admissão da metaprova também precisará se fundar.

3.1. A presunção de fiabilidade: o perigo de desborde na cadeia de provas

É mais consentâneo com o princípio da presunção de inocência uma postura de dúvida constante em relação aos enunciados fáticos que suportam a acusação (Gresta, 2016, p. 288). Contudo, essa perspectiva não deve alcançar os meios ou fontes de prova em si, como defendem alguns autores 26. Se não há razão para duvidar de determinada prova, deve-se, em regra, considerá-la minimamente fiável 27.

Com efeito, a prova é um enunciado (probatório) que, em determinado contexto, tem a função de confirmar outro enunciado (fático) e, como suporte e garantia de que um enunciado possa ser aceito como provavelmente verdadeiro, se organiza em uma espécie de cadeia de justificação. Em princípio, se partirmos de uma presunção de desconfiança, a prova, como enunciado que é, também deveria ser provada, como também os enunciados sobre tal enunciado, e assim por diante, em um espiral de prova sobre prova.

Note-se, portanto, que uma presunção de desconfiança da prova, levada às últimas consequências, é passível de gerar o perigo de desborde na cadeia de prova. Se sempre for legítimo que se continue a fornecer indefinidamente razões para demonstrar os enunciados, ou se alguém, antes de tomar uma decisão, quiser acessar todos os fatos a partir de outras metaprovas que justificam a metaprova, surge, então, a ameaça do regresso ad infinitum 28 das cadeias de provas 29.

Oreste Dominioni (1986, p. 748 e 754), entretanto, afirma a existência de uma presunção de confiança probatória fundada no princípio da normalidade. Sustenta o autor que há uma regra de dedução de veracidade, fornecida pelo id quod plerunque accidit, o qual cede logo que aparece um elemento dissonante da máxima de experiência. Douglas Walton (2002, p. 313) aduz, quando trata da prova testemunhal, que o declarante começa com um determinado grau de higidez e, mesmo que não exista evidência prévia de sua honestidade ou desonestidade, tal presunção poderá ser derrotada com qualquer elemento bem sucedido contra a testemunha.

Certamente, para que as relações sociais sejam estabelecidas, na vida cotidiana e no trato com o mundo objetivo há necessidade prática de confiar, mesmo de forma não indiscriminada, naquilo que se considera pretensamente verdadeiro, apesar de nem sempre sê-lo. Como bem lembra Jürgen Habermas (2016, p. 62), «para dirigir um carro ou atravessar uma ponte, não partirmos de uma atitude hipotética, refletindo a cada passo sobre a confiabilidade do know-how tecnológico ou estatístico do projetista». Assim, por exemplo, apesar do fato de confiar em um testemunho como guia para a ação prática ser diferente de aceitá-lo como verdadeiro (Ho, 2008, p. 249), em especial no contexto processual em que se busca um padrão de crença justificada, o certo é que é perfeitamente racional tratar criticamente as provas existentes com uma fiabilidade inicial, como uma espécie de candidatas a justificar uma proposição. Há, portanto, presunção relativa de fiabilidade que se estende, na seara processual, como um certo reflexo das relações sociais, aos meios e fontes de prova 30.

Como enfatizado alhures, para demonstrar um enunciado, recorre-se a outros enunciados. Quando uma hipótese é formulada, ela se conecta com outras e, assim, sucessivamente. Por exemplo, ao afirmar que «B não virá ao trabalho» e alguém questiona a base para tal afirmação, pode-se dizer que é porque «B está doente». O alicerce para se acreditar nisso pode residir no envio do atestado médico, o qual entende-se fiável, a partir da crença de que os médicos não mentiriam ou de que um documento médico é presumidamente verdadeiro. Tem-se, portanto, uma cessação no regresso de justificação. Caso assim não o fosse, provavelmente se entraria em uma espiral de razões, em que a hipótese X necessitaria de um suporte pela hipótese Y que, por seu turno, seria justificada pela Z, que também precisaria ser justificada para que a hipótese original X estivesse provada, e assim por diante até o infinito.

Dessa forma, entende-se que o juiz não é obrigado a se expressar, em regra, sobre a fiabilidade dos meios ou fontes de prova quando tal análise se encontrar baseada nas generalizações empíricas que guiam as relações humanas, mesmo levando em consideração que tais leis de validade universal não são capazes de integralmente conferir consistência axiomática às suas inferências 31. Isso porque, repisa-se, a fiabilidade mínima dos meios e fontes de prova é presumida. Por exemplo, das palavras de uma testemunha quanto ao fato percebido deduz-se, se não houver nada que lhe desacredite, que pode ser aceita como probabilisticamente veraz 32.

Tal premissa tem a sua importância à admissibilidade da metaprova, tema que começará a ser mais aprofundado a partir do item subsequente.

3.2. A relevância como filtro para admissibilidade da prova e a metaprova

Em uma perspectiva racionalista, os cânones que sustentam o raciocínio lógico-in­ferencial, como já aduzido alhures, devem ser empregados em todo procedimento probatório. Dessarte, critérios da racionalidade geral e das generalizações dotadas de sustento empírico, estudados mais profundamente em um contexto de valoração da prova, não podem ser ignorados no momento do juízo de admissibilidade probatória. Em assim sendo, também há filtros racionais de entradas de informações no processo (Vieira, 2017, p. 71) que, diga-se de passagem, antecedem, em regra, à aferição dos critérios de legalidade e de proibição probatória (Taruffo, 2014, p. 39). São obedecidas, dessa forma, as exigências de ordem lógico-racional antes de a prova ser submetida ao escrutínio por critérios jurídicos: deve ser verificado se as provas que se pretendem introduzir ou produzir no processo são úteis, se estorvarão a celeridade processual ou se criarão confusão ao julgador (Magalhães Gomes Filho, 1997, p. 130-131).

A doutrina há muito vem se debruçando sobre a estruturação dos critérios e filtros de natureza lógico-racionais ao direito à admissão da prova, sem alcançar, ainda, um consenso dogmático. Os estudos, por exemplo, ora conferem à noção de pertinência o sentido dado por alguns à locução relevância, ora restringem o termo como o único critério lógico-racional de admissibilidade, sugerindo que em seu bojo estariam contidos outros consectários, como utilidade, idoneidade, não redundância e a própria pertinência, e ora tratam as expressões relevância e pertinência como análogas 33. Marcelo Vinicius Vieira (2017, p. 97) pontua, contudo, que as diversas configurações do termo pertinência não apresentam critério inédito de admissibilidade, mas apenas uma roupagem diversa a filtros outrora já identificados.

Em face dessa cizânia, prefere-se considerar a locução relevância na concepção ampla desenvolvida por Michele Taruffo 34 e Jordi Ferrer Beltrán (2007, p. 68; 73 e 84), como uma espécie de cláusula geral que abrange os filtros racionais de admissibilidade de prova, a que mais se aproxima da abordagem epistêmica. Entende-se, pois, como epistemicamente relevante, tanto a prova que agrega conhecimento ao caso concreto a potencialmente influenciar no resultado do processo 35, como a que guarda conexão lógico-relacional direta com os enunciados fáticos produzidos em juízo, afastando, assim, a confusa bifurcação conceitual entre relevância-pertinência.

Entretanto, considerar que o objeto da prova possui relação lógica direta com o fato constitutivo da infração penal pode conduzir à conclusão de que a prova sobre outras provas não cumpriria o filtro de relevância à sua admissão, porquanto não permitiria fundar inferência sobre a aceitação ou não como verdadeiras as hipóteses fáticas objeto do processo. Jordi Ferrer Beltrán percebeu tal problema. Em seu exemplo (2007, p. 90), uma prova pericial cujo objeto é determinar a acuidade visual de uma testemunha não permitiria inferência a respeito da verdade ou falsidade sobre a proposição fática principal (se A disparou em B), mas sobre a sua fiabilidade (cujo conteúdo é se a testemunha T teria condições de ver A disparar em B). Nesse aspecto, com base no que se entende ordinariamente por relevância, esta prova não deveria, em princípio, ser admitida 36.

O professor da Universidade de Girona, entretanto, também parece reconhecer que, apesar de não cumprir o filtro de relevância, conforme a definição por ele insculpida, a metaprova pode ter importância epistêmica para a escorreita tomada de decisões (Ferrer Beltrán, 2007, p. 90). Deveras, partindo da premissa de que os dados de suporte a uma proposição precisam ser fiáveis, não há dúvidas de que a metaprova pode possuir aptidão para viabilizar, de alguma forma, a revisão da probabilidade de ser tido como verdadeiro o enunciado fático discutido no processo. Supõe-se o caso de uma única testemunha (T) que averba na fase inquisitorial, em narrativa plausível e linear, ter visto, mesmo a uma distância considerável, A saindo da casa de B com uma faca na mão. Há, portanto, relevância à admissão desse meio de prova na fase processual, uma vez que se suas declarações forem potencialmente tidas por verdadeiras tornariam a proposição fática mais provável. A prova da ausência da acuidade visual de T, no sentido de que não seria capaz de distinguir uma pessoa de outra, por exemplo, poderá fazer com que a probabilidade sobre o enunciado referente à autoria do crime de homicídio seja revisitada em razão da baixa fiabilidade da fonte de prova. Isoladamente, a metaprova pode parecer trivial. Contudo, ao se ligar à prova principal, passa a ter importância para auxiliar na valoração adequada daquela prova.

Em resumo, aponta-se três casos em que haverá admissibilidade da prova a partir do critério lógico-racional da relevância: a) quando o seu objeto caracterizar um fato principal; b) quando o seu objeto caracterizar um fato secundário que funda uma inferência a respeito de um fato principal; c) quando o seu objeto caracterizar um fato secundário que subsidia a inferência a respeito de outro fato secundário e é também relevante, em determinado contexto, em relação à existência do fato principal (Taruffo, 1970, p. 250) 37. Para especificar função da metaprova, um outro item, derivado do item «c», pode ser detalhado nos seguintes termos: quando o seu objeto caracterizar um enunciado secundário que subsidie inferência a respeito da fiabilidade de uma prova relevante ao fato principal. O critério lógico-racional relacionado à metaprova será um pouco mais detalhado adiante.

3.2.1. A metarrelevância e a admissibilidade da metaprova

Apesar de a metaprova não ser apta a auxiliar na construção direta das redes inferenciais dirigidas especificamente aos enunciados fáticos principais, ela pode ter importância para aumentar ou diminuir a força de outra prova ou da cadeia de raciocínio estabelecida a partir desta prova (Schum, 2016, p. 164).

À vista disso, uma prova é diretamente relevante se por meio dela se conseguir montar, potencialmente, uma cadeia de raciocínio dirigido à hipótese principal (Schum, 2016, p. 173). Há, entretanto, casos em que uma prova (P2) permite fundar inferências sobre a força ou debilidade de outra prova (P1) que, por sua vez, autoriza a realização de inferências sobre a verdade ou falsidade dos enunciados fáticos principais a provar. Nesse aspecto específico, há um tipo de relevância indireta ou mediata em relação à hipótese fática principal, como defende David Schum (2016, p. 176) 38.

Mas, não só. Há casos em que a metaprova será relevante para conduzir à conclusão de que a prova sobre a qual se projeta não possui relevância para demonstrar um enunciado fático. Contudo, ainda assim, a retirar a aptidão da prova para estabelecer a verdade ou falsidade do enunciado fático objeto do processo, a metaprova acaba por influir na atividade desenvolvida no contexto da valoração probatória. Ora, se a metaprova se projeta sobre outra prova, a impactar na sua fiabilidade, e sendo a fiabilidade um critério de valoração 39, ela, em regra, possui relevância para influir no processo valorativo, individual e conjunto, decorrente da prova tida como aprioristicamente relevante.

Imagina-se, assim, que T1 testemunha que A cometeu um crime. Se T2 testemunha que T1 estava com ela em lugar diverso do local do delito, o testemunho de T2 é processualmente relevante, pois neutraliza a aptidão do testemunho de T1 e, em consequência, sua força inferencial para auxiliar a conclusão de que A provavelmente tenha cometido crime 40. Note-se, dessa forma, que a metaprova isolada não teria qualquer relevância, caso se interprete que a prova é relevante somente quando apontada aos enunciados fáticos principais da causa.

Em assim sendo, para que o requisito lógico-racional à admissibilidade da metaprova se encontre preenchido, mister que a fonte/meio metaprobatório potencialmente permita aferir a eficácia do enunciado probatório concreto e específico que visa a reforçar, debilitar ou anular. A sua relevância, portanto, é derivada da relevância de outra prova. Há, nesse aspecto, uma espécie de metarrelevância 41 ou relevância processual (Badaró, 2019, p. 159, n. 103).

Por conseguinte, a metaprova, até por seu caráter subsidiário, necessariamente não será relevante se o meio ou fonte de prova sobre a qual se projeta também não o for. Supõe-se que já há elementos de prova suficientes de que A matou B, extraídos das testemunhas T1 e T2, além de outros elementos produzidos por outros meios de prova. A prova da sensibilidade observacional de outra testemunha (T3), que terá a sua oitiva dispensada por já existirem provas abundantes e produzir pouca informação substancial para o acertamento fático, é, no caso concreto, irrelevante. Em outro exemplo, a elucidação da dúvida sobre a integridade formal de um documento por meio de regras procedimentais próprias para aferição de sua maior, menor ou nula qualidade epistêmica, como a via incidental prevista, por exemplo, no art. 145 do CPP brasileiro, típica atividade metaprobatória, não fará sentido se tal documento não tiver relevância para o esclarecimento das hipóteses fáticas constitutivas da infração penal.

Reafirma-se, consequentemente, que uma metaprova, assim como as demais provas 42, não é relevante em si mesma, mas é relacional, contextual (uma vez que pode ser relevante para um determinado caso concreto, mas não para outro) e, além do mais, é conexa a um enunciado (probatório) relevante que almeja influenciar.

Da mesma forma, a metaprova não visa a interferir na fiabilidade de prova que não possui eficácia. A metaprova tem o condão de auxiliar na análise da qualidade de uma prova obtida ou produzida segundo as prescrições legais (Gascón Inchausti, 1999, p. 30). Não se pode rebaixar ou reforçar a fiabilidade de uma possível prova adquirida/produzida por meio de uma atividade probatória espúria, legalmente não admissível e, em consequência, juridicamente inexistente.

E mais. Na enunciação do critério de relevância da metaprova também está implícita a condição de se impedir um regresso ao infinito ao longo da cadeia de proposições fáticas secundárias, uma vez que um fato relevante em relação a outro pode não ser em relação à conclusão final se a hipótese intermediária que é capaz de confirmar não influencia, direta ou indiretamente, essa própria conclusão (Taruffo, 1970, p. 250).

Há, outrossim, circunstância em que é mais clara a relevância de uma metaprova. Uma situação de dissonância probatória, por exemplo, no qual uma testemunha (T2) averba algo em total contrariedade ao que outra testemunha (T1) aduziu pode ser resolvida por meio da obtenção de uma metaprova, apta a produzir elementos periféricos e auxiliares para aumentar a fiabilidade de uma ou de outra fonte de prova. Há outros casos, entretanto, em que é necessária a construção de argumentos bastante elaborados para justificar a relevância de uma metaprova. Com efeito, conforme já desenvolvido neste texto, parte-se da máxima de experiência referente à presunção mínima de fiabilidade da prova. Por óbvio, tal generalização pode ser submetida a um teste probatório, mas, a depender do tempo e contexto (Anderson et al., 2005, p. 72), em regra quando ocorre desvirtuamento da prova em um caso particular. Assim, por exemplo, não há que se demonstrar, a partir de uma atividade metaprobatória, a acuidade visual de toda e qualquer testemunha, porquanto se parte da generalização de que, frequentemente, quando uma pessoa reporta haver observado a ocorrência de um evento, é porque ela crê que ele ocorreu a partir do elemento sensorial recebido.

Pode-se entender, ademais, que uma metaprova proposta, apesar de potencialmente relevante em sentido estrito, venha a ser supérflua 43. Há hipóteses em que a fiabilidade de uma prova específica já é demonstrada por meio de sua imbricação com outras provas relevantes ou, até mesmo, a partir de elementos estruturantes originários e decorrentes da própria fonte de prova, conforme já abordado. Ressalte-se que o juízo de admissibilidade com base no critério da superfluidade fica mais claro em casos de metaprova, mormente quando a análise da potencial necessidade de uma atividade metaprobatória venha a ser aferida ao longo da instrução probatória, sobretudo naqueles casos das denominadas provas constituendas 44. Na realidade, a partir desse juízo de superfluidade tem-se um corte abrupto na cadeia probatória, ao inserir um limite à admissibilidade da metaprova, com o escopo também de se evitar o perigo do regresso ao infinito.

Em suma, a prova é relevante para uma proposição fática se possui uma tendência substancial 45 para tornar esse enunciado mais ou menos provável do que seria sem a prova. Por sua vez, a metaprova pode se relacionar com a proposição a que se refere (um outro enunciado probatório), mas não ter relevância (metarrelavância) naquele contexto processual, uma vez que: a) a prova a que se refere não é relevante ao caso concreto; b) a metaprova não é necessária para aumentar ou diminuir a fiabilidade da prova relevante, ou seja, não influi substancialmente na qualidade epistêmica da prova. Propõe-se, nesse último caso, imaginar que por meio de uma prova pericial se possa demonstrar a sensibilidade observacional de uma testemunha, no caso em que seja importante ao processo o que ela ouviu e não o que viu. Essa prova pericial poderia até servir de reforço à sua acuidade visual, mas, nesse contexto, não teria qualquer relevância àquilo que se deseja especificamente demonstrar: que a testemunha ouve bem e, portanto, seria uma fonte de prova fiável.

3.2.2. A valoração provisória da prova para admissão da metaprova

Como desenvolvido alhures, ao não sustentar inferência acerca da veracidade ou falsidade dos enunciados fáticos objeto do processo, a relevância processual da metaprova é derivada da relevância de outra prova, circunstância a indicar a sua natureza acessória e estritamente instrumental 46.

Uma das consequências dessa conclusão, somada à presunção mínima de fiabilidade probatória, é que, de maneira diversa da admissão da prova diretamente relevante, orientada pelo princípio geral da liberdade de incorporação das fontes de prova, o juízo de admissibilidade da metaprova, em especial sobre a prova já judicializada, passa a ser mais rigoroso 47.

Assim, justamente em face de seu cariz subsidiário, a admissibilidade da metaprova pode se encontrar condicionada à prévia valoração atomista de uma prova dirigida à hipótese fática principal. Apesar de, como já referido, a admissibilidade da prova ser um processo binário (admite-se ou não se admite) e a valoração um processo gradativo (vai diminuindo ou aumentando a força inferencial), um juízo de valor provisório ao menos sobre a fiabilidade da prova a que ela se refere para se constatar a relevância ou utilidade de possível metaprova não pode deixar de ser realizado.

Isso porque a metaprova estará vinculada à constatação do nível de dúvida sobre a qualidade epistêmica daquela prova específica. Se não há, no mínimo, dúvidas sobre a solidez da prova, sequer a metaprova será admitida. Ao que parece, nesse sentido é a observação de Jordi Ferrer Beltrán (2007, p. 91) ao aduzir que, no processo, há uma espécie de valoração in itinere realizada durante a produção da prova, cujo escopo é justamente detectar insuficiências ou imperfeições. Para solvê-las, aduz o professor da Universidade de Girona, é necessário poder-se determinar de ofício 48 ou a pedido das partes, a depender da gravidade do defeito, a prática de nova prova (metaprova) dirigida à constatação ou não da fiabilidade de prova já aportada ao processo. Se assim não fosse, qualquer proposta de metaprova resultaria admissível, independentemente de sua necessidade, porquanto o julgador não teria formado, sequer provisoriamente, seu juízo acerca da eficácia dos meios de prova produzidos e, portanto, não lhe surgiria quaisquer questões sobre a sua fiabilidade (Gascón Inchausti, 1999, p. 47-48). Dessarte, pelo fato de a metaprova ter o escopo de conferir subsídios para melhor avaliar determinada prova, é importante, para isso, que haja apreciação prévia da própria prova para admissibilidade e produção da metaprova.

Ademais, também por estarem os enunciados a serem demonstrados com a metaprova mais distantes daquelas hipóteses que constituem estritamente o thema decidendi, é conveniente, para viabilizar a admissão da metaprova, a justificação de indicativos claros de possível comprometimento da fiabilidade de algum meio e/ou fonte de prova (Gascón Inchausti, 1999, p. 70-71) 49, a fim de sustentar a sua produção em momento processual imediatamente posterior, como regra, à produção da prova, cujo valor probatório se deseja influenciar (p. 144). Em outros termos, mister a construção mais fundamentada de argumentos, indicando razões robustas, para justificar a relevância da metaprova (Schum, 2016, p. 170).

Com isso, ajuda-se a evitar possíveis minijulgamentos dentro de julgamentos, a resguardar, assim, a celeridade e a economia processual, impedindo o consumo de tempo e o desenvolvimento de atividades processuais sobre questões marginais. A título de exemplo, partindo-se da premissa de que a fonte de prova é minimamente fiável, não há dúvidas quanto à necessidade de elevada demonstração da relevância para admissão da prova (metaprova) sobre a fiabilidade de um documento público de conteúdo declaratório, mormente em face da máxima de experiência normatizada no art. 405 do Código de Processo Civil (CPC) brasileiro, que presume verdadeiros os fatos enunciados pelo servidor público e ocorridos em sua presença (Mendonça, 2020, p. 460-461) 50.

Nessa linha, considerando, por um lado, que nem sempre é possível a parte prever a possibilidade de reforçar ou rebaixar a fiabilidade de uma fonte de prova no momento inicial do processo, mas, por outro lado, que o processo deve ser ordenado racionalmente e se desenvolver de forma célere, procurando evitar que a atividade metaprobatória sirva a indevidos atos dilatórios ou obstrutivos ao deslinde do feito, Fernando Gascón Inchausti (1999, p. 157) defende que, já na proposição da metaprova, sejam especificados de forma acentuada as hipóteses que se pretende demonstrar com ela, bem como a sua incidência sobre o valor probatório de alguma prova produzida, os meios de que se pretende servir para tal escopo e a necessidade/relevância da metaprova proposta. Tais aspectos são controláveis com alicerce no princípio da boa-fé processual e da proibição de abuso de direito (p. 144), afastando-se, assim, de conjecturas e alegações genéricas.

Em assim sendo, considerando-se a validez prima facie dos atos processuais (Cabral, 2017, p. 407), a mera possibilidade de vício não diminui o valor da prova, afigurando-se indispensável a efetiva demonstração de hipótese fática concreta indicativa de que pode ter havido contaminação ou manipulação da fonte de prova, a gerar dúvida fundada, questão a viabilizar a admissão/produção da metaprova 51.

Inclusive, em um cariz pragmático, Jordi Ferrer Beltrán esclarece que não é exigido ao julgador a prova de todas as premissas que operam como fundamentos indutivos da ampla cadeia de inferências que permite alcançar suas conclusões sobre os fatos provados no processo, a ponto de produzir um regresso ao infinito. Assim, para o professor da Universidade de Girona, a quantidade de passos inferenciais que devem ser dados depende, em boa parte, da dinâmica do próprio processo e das alegações das partes. Por exemplo, se o interessado apresenta elementos passíveis de questionar a fiabilidade de uma determinada técnica científica utilizada como base em uma prova pericial, tal fato precisará ser objeto de raciocínio probatório. Caso contrário, é possível assumir tal técnica como hígida, sempre que se disponha de informação sobre sua fiabilidade (Ferrer Beltrán, 2021, p. 41-42)..

Assim, a avaliação da admissibilidade da metaprova pelo juízo deve ser mais rigorosa, se comparada à admissão da prova que se dirige aos enunciados fáticos principais. Esse juízo mais rigoroso de necessidade não parece contraditório à liberdade de inclusão probatória como indicativo epistêmico. Isso porque ao direito à prova e, em consequência, ao direito à metaprova, encontram-se também agregadas exigências relacionadas ao direito a um processo sem dilações indevidas.

Da mesma forma, a metaprova, sendo elemento eventualmente necessário, é, em regra, admissível —especialmente quando a sua suposta necessidade surge a posteriori à produção da prova sobre as proposições fáticas em que descansa a demanda dos autos— quando há impugnação ou contestação, com dados concretos, da fiabilidade do meio ou fonte de prova que possam vir, potencialmente, a violar a garantia do contraditório e da ampla defesa 52. Com isso, evita-se que se alargue indevidamente o procedimento ou o paralise, vulnerando, como já averbado, o também direito a um processo célere (Fernández López, 2005, p. 99-100), além de impedir que a marcha processual venha a ser estorvada com o deslocamento das discussões próprias do objeto do processo para questões periféricas, instalando-se uma demanda dentro da outra e perdendo-se em debates marginais que não dizem respeito diretamente à proposição fática principal.

Em suma, há de se questionar se a metaprova potencialmente terá um valor substancial para, de alguma forma, influenciar no caso concreto. Se a resposta for positiva, deve-se ainda verificar se, embora possua certa relevância, será ou não necessária em face de outros princípios, como a celeridade ou economia processual, ou da existência no processo de outros dados probatórios aptos a conferir fiabilidade à prova a que se refere. Dessarte, a produção da metaprova faz-se mais necessária quando as provas sobre os enunciados fáticos diretamente relacionados ao objeto do processo forem quantitativa e/ou qualitativa diminutas. Isso porque, quanto menor o volume qualitativo/quantitativo de provas, maior a necessidade de assegurar, por meio de elementos acessórios como o é a metaprova, a fiabilidade dos escassos dados. Nesse aspecto, a metaprova é importante para conferir fiabilidade a um único meio de prova existente (Gascón Inchausti, 1999, p. 67), como, por exemplo, quando as declarações da vítima forem as únicas provas dirigidas diretamente ao objeto do processo. Se houver, entretanto, outras provas superiores, em um entrelaçamento constitutivo em busca de uma justificação adequada, com potencial de diretamente se projetar sobre as hipóteses fáticas principais levadas ao processo, corroborando-as ou infirmando-as, não haverá necessidade, em princípio, da produção da metaprova.

Percebe-se, dessa forma, que a admissão da metaprova é excepcional, restritiva, eventual e específica. A existência de circunstâncias fáticas que, aparentemente, levem a dúvidas sobre a higidez de determinado meio ou fonte de prova já judicializado, ensejaria a necessidade da atividade metaprobatória, ou seja, casos de possível «desestabilização da prova» 53 podem ensejar outra atividade probatória com o escopo de inibir ou corroborar a qualidade epistêmica da prova e, em consequência, influir em sua força inferencial.

3.2.3. O contraditório para admissão da metaprova

A necessidade superveniente de se estabelecer uma atividade metaprobatória demanda tratamento especial. Enquanto as provas diretamente relacionadas ao enunciado fático principal não requerem, pelo princípio da inclusão probatória, a demonstração, pelas partes, de relevância, cabendo ao juiz, entretanto, rejeitar sua admissão caso verifique manifesta irrelevância (Badaró, 2016, p. 249-250), no juízo de admissão da metaprova, reitere-se, essa lógica é invertida. E é justamente em face disso que a garantia epistêmica oriunda do princípio do contraditório —tradicionalmente dirigida ao processo de formação da prova, no caso de provas constituendas, ou sobre a prova produzida, no caso de provas pré-constituídas 54— passa a alcançar relevo em um momento anterior à própria adição da metaprova no processo, a incentivar o confronto dialético prévio à sua admissão. Em consequência, cria-se um filtro cognitivo para o controle de sua entrada no processo, com maior amplitude do debate entre quem deseja a sua inserção e quem a entende desnecessária ou inútil.

Noutros termos, mister oportunizar que as partes se pronunciem preventivamente sobre a admissibilidade da metaprova antes de o órgão judicial tomar a sua decisão (Gascón Inchausti, 1999, p. 158). O aumento do controle das partes sobre a entrada da metaprova no feito, por um lado, intensifica o embate argumentativo sobre os critérios de admissibilidade e, por outro lado, oportuniza à parte adversa solicitar o afastamento de potenciais metaprovas inúteis, mormente em casos nos quais já foi viabilizado um controle de fiabilidade a partir de elementos produzidos da própria fonte/meio de prova ou por outra prova dirigida ao enunciado fático principal. Assim, mesmo considerando que a decisão de admissibilidade de uma prova (no caso, metaprova) só pode ser resolvida hipoteticamente, é mister conferir às partes a possibilidade de apresentar manifestação, por exemplo, sobre a possibilidade de já existirem nos autos, em conjectura, dados que comprovem ou desvirtuem a fiabilidade daquela prova específica, ou se existem possíveis elementos corroborativos ou infirmativos que demonstrem a superfluidade de uma atividade voltada à produção de prova periférica. O certo é que precisam, como já aduzido, ser construídos argumentos mais elaborados, que devem ser confrontados dialeticamente para melhor justificar a relevância da metaprova (Schum, 2016, p. 170).

O controle dialético da inclusão da metaprova, estabelecido pelos testes de contraditório a partir dos argumentos sobre a sua relevância ou superfluidade, é potente instrumento que pode servir de filtro epistêmico, além de estimular a sedimentação de processo penal de cariz mais adversarial. Ao incentivar a participação mais efetiva dos atores processuais na possibilidade de influenciar o julgador para a admissão da metaprova, não se deixa exclusivamente ao alvedrio do decisor, sem a devida contribuição das partes, a aferição de um aspecto limitador à liberdade de incorporação da prova, mormente quando a atividade metaprobatória tem o potencial de alargar a instrução processual ou de viabilizar a sua reabertura.

4. RESUMO CONCLUSIVO

No presente trabalho, buscou-se apresentar algumas ideações sobre o contexto da admissibilidade da metaprova. Adiante, pretende-se sumariar e realçar o périplo percorrido, apresentando ao leitor breves indicações gerais sobre os principais pontos enfrentados:

1) A atividade probatória é dirigida predominantemente à demonstração das proposições fáticas constitutivas da pretensão penal e, para que as provas sejam aptas a sustentarem um enunciado fático, preferindo-o em relação a outros, mister que sejam, além de relevantes, minimante fiáveis;

2) A fiabilidade guarda conexão com a solidez ou com qualidade epistêmica que possui uma prova em um viés ou estado objetivo, a partir da aferição de certos dados que podem ou não se encontrar aprioristicamente integrados a ela. A fiabilidade probatória é medida em graus, ou seja, uma prova pode ser mais ou menos fiável;

3) A fiabilidade probatória pode ser constatada durante o processo específico de formação do elemento de prova; pela relação lógica e de apoio mútuo e multidirecional entre enunciados probatórios; ou por meio de outra atividade probatória dirigida à própria prova;

4) O enunciado probatório, além de se projetar sobre os enunciados fáticos principais, objeto do processo, também pode se projetar sobre a própria prova. Nesse aspecto, o objeto da prova é mais amplo que o objeto do processo;

5) Apesar de se defender que é perfeitamente racional tratar criticamente as provas com uma apriorística presunção de fiabilidade mínima, como uma espécie de candidatas a justificar uma proposição, pode-se fazer necessária a prática de meios de prova, não para averiguar diretamente a verdade ou falsidade dos enunciados fáticos objeto do processo, mas para demonstrar algo que afeta substancialmente, seja de forma positiva ou negativa, a eficácia de outra prova;

6) Um elemento destinado a constatar a fiabilidade de uma prova não é um simples ato instrutório informativo. Mesmo possuindo função instrumental, a agir como mecanismo de desvelamento de falhas ou detecção de qualidades não patentes de outras provas, não deixa de ser uma espécie do gênero prova. É, na verdade, uma prova sobre outra prova ou, no termo que se prefere, uma metaprova;

7) Como as provas se organizam em cadeia e como se recorre a enunciados (probatórios) para demonstrar outros enunciados, o enunciado probatório sobre outro enunciado probatório (metaprova), caso partamos de uma presunção de desconfiança da prova, também deveria ser objeto de prova e, assim, sucessivamente, podendo ocasionar o regresso ao infinito;

8) Entende-se epistemicamente relevante tanto a prova que potencialmente agrega conhecimento ao caso concreto a ponto de poder influenciar o resultado do processo, como a que guarda conexão lógico-relacional direta com os enunciados fáticos produzidos em juízo;

9) Apesar de a metaprova não possuir relação lógica direta com a hipótese fática constitutiva da infração penal, pode ter importância epistêmica para a escorreita tomada de decisão, ao adquirir relevância devido à sua associação com outras provas diretamente relevantes, o que pode ser identificado como metarrelevância. Como a metaprova se projeta sobre outra prova, caso esta seja inadmissível, aquela também o será;

10) Uma metaprova, assim como as demais provas, não é relevante em si mesma, mas é relacional, contextual (uma vez que pode ser relevante para um determinado caso concreto, mas não para outro) e, além do mais, é conexa a um enunciado (probatório) relevante que almeja influenciar;

11) A metaprova pode se relacionar com outro enunciado probatório, mas não ter relevância (metarrelavância) naquele contexto processual, uma vez que: a) a prova a que se refere não é relevante ao caso concreto; b) a metaprova não é necessária para aumentar ou diminuir a fiabilidade da prova relevante, ou seja, não influi substancialmente na qualidade epistêmica da prova;

12) A admissibilidade da metaprova está condicionada à prévia e provisória valoração da prova, a viabilizar a aferição ao menos da fiabilidade da fonte de prova a que a metaprova se refere;

13) Ao contrário das provas diretamente relacionadas ao enunciado fático principal, na qual não compete às partes a demonstração de sua relevância, mas ao juiz indeferir a sua produção, caso sejam irrelevantes, no juízo de admissão da metaprova tal lógica é invertida e, também em razão da necessária análise mais rigorosa de sua relevância e utilidade, o prévio confronto dialético entre as partes para a admissão dessa modalidade probatória precisa ser incentivado.

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* Este trabalho é uma versão resumida de algumas reflexões contidas na obra Salgado (2023). A metaprova no processo penal: seu perfil conceitual e funcional e o controle racional da fiabilidade da prova. Juspodivm, (no prelo). O livro, por sua vez, é fruto da dissertação de mestrado em direito processual defendida na Universidade de São Paulo sob a orientação do professor Gustavo Henrique Badaró, em banca composta pelos professores Jordi Ferrer Beltrán, Vitor de Paula Ramos e Maria Thereza de Assis Moura, a quem agradeço pelos comentários, observações e sugestões.

1 Para uma distinção que parte da doutrina faz entre conteúdo e objeto do processo, vide Jardim (2002, p. 21).

2 Não é a verdade dos fatos que deve ser objeto da prova, uma vez que os fatos existiram ou não existiram no passado. O que se pode falar em termos de verdadeiro ou falso são as afirmações, proposições, enunciados ou hipóteses acerca da existência de um fato. Nesse sentido, Magalhães Gomes Filho (2005, p. 317); Ubertis (1992, p. 9-10); Canzio et al. (2009, p. 322).

3 Gustavo Henrique Badaró (2017, p. 517), alicerçado nos ensinamentos de Michele Taruffo, sustenta que «a justiça de uma decisão está condicionada não apenas à verdade dos enunciados que amparam o juízo de fato, mas também à correta escolha e interpretação das regras jurídicas, bem como o emprego de um procedimento válido». Já Jordi Ferrer Beltrán (2021, p. 22) aduz que a averiguação da verdade sobre os fatos é o fim institucional da prova. Rodrigo Coloma Correa (2017, p. 39), por seu turno, afirma que «el interés institucional en la determinación de los medios de prueba se vincula a que la actividad probatoria sea más/menos eficiente, más/menos invasiva de derechos fundamentales, o más/menos legitimadora de los hechos probados».

4 Neste trabalho, considera-se que o termo fiabilidade «guarda conexão com a solidez ou com a qualidade epistêmica que possui uma prova em um viés ou estado objetivo, a partir da aferição de certos dados que podem ou não se encontrar aprioristicamente integrados a ela, ou a partir da análise lógica interna de uma narrativa (fiabilidade intrínseca), a versar sobre quão bem a prova demonstra o que pretende demonstrar» (Salgado, 2023, no prelo). Para uma melhor compreensão do sentido epistêmico do termo fiabilidade e o confronto do referido vocábulo com outras expressões como credibilidade, validez e competência, bem como a análise de seus atributos ou critérios gerais, vide Salgado (2023, no prelo).

5 O termo prova sempre foi definido a partir de diversos pontos de vista e acepções, tendo, assim, uma natureza polissêmica. Sobre as diversas terminologias da locução prova, vide Magalhães Gomes Filho (2005, p. 304-310) e Amaral (2017, p. 28).

6 A fiabilidade em si mesma não deve se confundir com a força inferencial ou com o valor probatório. Nos dizeres de Carmen Vázquez (2015, p. 197) há, entretanto, uma relação entre fiabilidade e força inferencial, porquanto se a prova não é fiável, não tem força alguma, mas, se fiável, a força probatória dependerá dos fatos em causa.

7 David Schum (2016, p. 145-153) trata de atributos ou critérios gerais de fiabilidade (ou, como prefere o mencionado autor, credibilidade). Para uma sistematização dos atributos de fiabilidade, vide Salgado (2023, no prelo).

8 Nesse aspecto, Dale Nance (2005, p. 11), por exemplo, direciona-se ao abandono da concepção dicotômica da acepção científica da expressão validez (ou precisão), atributo de fiabilidade, como se verificará adiante. Segundo a autora, deve haver uma demonstração de fiabilidade suficiente para a admissão da prova, mas reconhece, todavia, que a locução suficiente nada diz, exceto que algum teste baseado em fiabilidade deva ser empregado (Nance, 2005, p. 3) Marina Gascón Abellán (2021, p. 79), ao reconhecer que a fiabilidade é uma questão de grau, também defende que para avaliar se uma prova é suficientemente fiável para ser admitida, é preciso definir o seu standard. Por seu turno, Gary Edmond e Kent Roach (2011, p. 343-409, p. 406-407), ao tratarem das provas científicas, defendem a adoção de standards de fiabilidade assimétricos entre o Estado e o particular. Assim, enquanto as provas apresentadas pelo Estado deveriam ter um standard de fiabilidade mais elevado para serem admitidas, o standard para o acusado deveria ser mais fraco. Aparentemente em sentido contrário a esses últimos autores, veja Vázquez (2015, p. 162).

9 No dizer de David Schum (2016, p. 151), há autenticação quando os dados são exatamente o que parecem ou o que afirmam ser, livres de adulteração ou corrupção. O atributo da autenticação, contudo, não se confunde com autenticidade. Um documento com assinatura falsa pode passar pelo teste de autenticação, pois é o que o Ministério Público diz que é (um documento falso), apesar de não passar pelo teste de autenticidade, justamente porque é contrafeito (Dallagnol e Câmara, 2019, p. 533). Outro atributo identificado por David Schum (2016, p. 152-153) é a precisão (expressão relacionada àquilo que a filosofia da ciência denomina de validez). No conceito de Humberto Ávila (2018, p. 124), a precisão pode ser caracterizada pela «capacidade dos elementos de prova de transmitir com acurácia informações a respeito do fato que se pretende provar». Terence Anderson et al. (2005, p. 65) também consideram atributos da fiabilidade (na denominação dos autores, credibilidade) a consistência (conceito que a filosofia da ciência utiliza como sinônimo de fiabilidade), ou seja, a replicabilidade do processo utilizado para gerar o elemento de prova.

10 A Corte de Cassação italiana já conferiu a seguinte interpretação sobre o objeto da prova, mesmo em face da aparente restrição dada pelo artigo 187 do CPP daquele país. Anote-se: «Oggetto della prova sono i fatti che si riferiscono all’imputazione (articolo 187 c.p.p., comma 1). Ciò non vuol dire che siano ammissibili e valutabili solo prove concernenti gli elementi essenziali della fattispecie contestata (la condotta, l’evento, la causalità’, l’elemento soggettivo), poiché’ il criterio di pertinenza attiene a tutte le circostanze utili per la verifica delle ipotesi ricostruttive formulate dalle parti» (Cass. pen., senz. VI, 10/10/2018, n. 45.733).

11 No exemplo de Miguel Fenech (1956, p. 130-131): «Son pruebas acessorias las utilizadas para determinar la autenticidad de un documento que, a su vez, sirve de prueba de los hechos objeto del proceso; las dirigidas a acreditar alguna circunstancia que pueda influir en el valor probatorio de la declaración de un testigo...».

12 Michele Taruffo (2009, p. 457-458) refere-se a duas hipóteses de fatos secundários. Em suas palavras: «No obstante, conviene distinguir al respecto en función de que el hecho secundario que constituye el objeto de la prueba sea: a- un evento que se forma parte de la ‘porción de realidad’ en la que está incluido también el hecho principal, que se vincula con aquél inferencialmente de forma que su respectiva hipótesis resulta confirmada o rechazada; b- una circunstancia que pertenece, en cambio, a la prueba del hecho principal y que permite formular inferencias que no se refieren a la existencia del hecho a probar sino a la credibilidad y la aceptabilidad de la prueba».

13 Expressão utilizada por Fernando Gascón Inchausti (1999, p. 32).

14 A expressão é referida por Marcelo Mendroni (2015, p. 81), que se vale da doutrina alemã.

15 Em outras áreas do conhecimento, a metalógica é entendida como o estudo dos sistemas de lógica, ou seja, é a lógica da lógica (Gensler, 2016, p. 402). A disputa na filosofia da filosofia é chamada de metafilosofia (Fumerton, 2014, p. 23). Uma metacrença ou crença de segunda ordem é uma crença acerca de outra crença (Dinis, 2013, p. 71, n. 79). Também inspirados nestas outras áreas do conhecimento, preferirmos optar pelo vocábulo metaprova para denominar o fenômeno da prova sobre prova.

16 Os autores denominam esse fenômeno probatório de maneiras diversas. A título de exemplo, para Michele Taruffo (2009, p. 458), as provas que recaem sobre proposições fáticas secundárias são denominadas provas subsidiárias. Na mesma linha, Giulio Ubertis (2017, p. 118, n. 70). Miguel Fenech (1956, p. 130-131) chama o fenômeno de provas acessórias, definindo-as como aquelas que não se projetam sobre os fatos do processo, mas sobre outras provas, enquanto Luis Muñoz Sabaté (1967, p. 255-256) as denomina instrumentos heurísticos ou probatórios (assim denomina os meios de prova) para comprovar o instrumento da comprovação. Fernando Gascón Inchausti (1999, p. 29) emprega o termo prova sobre prova, definindo-o como atividade processual desenvolvida com o escopo de convencer o órgão judicial de que a eficácia probatória que merece determinado meio de prova deve aumentar, diminuir ou desaparecer no processo de valoração da prova. Essa linha é seguida por Jordi Ferrer Beltrán (2007, p. 88-89), que denomina prova sobre prova ou provas de segunda ordem. Há quem denomine tal espécie de prova periférica, sobre fatos periféricos ou de corroboração periférica, como o fazem Rikell Vargas Meléndez (2019, p. 230 e 255) e Jordi Nieva Fenoll (2010, p. 226-227). Manuel Ortells Ramos (2003, p. 250) as cognomina de provas auxiliares, entendendo-as como aquelas cujo objeto são elementos condicionantes da fiabilidade de outro meio de prova. Terence Anderson et al. (2005, p. 380) classificam como prova auxiliar (ancillary evidence) ou de relevância indireta (indirectly relevant evidence) aquelas que conferem força ou fraqueza a outra prova ou ao elo de enlaces nas cadeias de raciocínio, estabelecidas pela prova diretamente relevante. A expressão metaprova é utilizada por Richard Friedman (1995, p. 255); Susan Haack (2015, p. 296-298); Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara e Deltan Martinazzo Dallagnol (2019, p. 530); Antonio do Passo Cabral (2020, p. 94-95). Há concepções de metaprova em certos aspectos diversas da ora exposta. Maggie Wittlin (2021, p. 1331-1394), por exemplo, aparentemente introduz um conceito de metaprova como uma espécie de prova, apresentada em uma fase preliminar ao julgamento, utilizada para demonstrar quais provas serão apresentadas no trial.

17 Alguns outros autores também não reconhecem a acareação como meio de prova (vide, por exemplo, Rangel (2020, p. 508); Vargas Meléndez (2019, p. 386); Montero Aroca et al. (2001, p. 309)). Contudo, a partir das características com as quais se trabalha neste texto, a acareação tem indubitável natureza metaprobatória: o seu escopo é, justamente, demonstrar o grau de fiabilidade de cada uma das declarações contraditórias por intermédio do cotejo de uma nova narrativa esclarecedora com a outra, para determinar qual delas terá prevalência (nesse sentido, Gascón Inchausti, 1999, p. 118).

18 Conforme os escólios de Gustavo Henrique Badaró (2019, p. 141), as fases do procedimento probatório podem ser didaticamente divididas nesta sequência: a) investigação; b) instrução (proposição, admissibilidade e produção); c) valoração; d) decisão; e) justificação. Por sua vez, Rodrigo Coloma Correa (2017, p. 36) apresenta três etapas do procedimento probatório: a) preparação da atividade probatória; b) produção de provas e argumentos; c) decisão e justificação. Na primeira fase, é apresentada a hipótese fática juridicamente relevante a provar, agregada a um rol de meios de prova aptos a confirmá-la ou não. Na segunda etapa, as provas e os argumentos são apresentados. Na terceira, cujo protagonismo é do decisor, se dirime se a hipótese se encontra ou não provada, comunicando ao auditório as razões (Coloma Correa, 2017, p. 43 e 47).

19 Conclui Rodrigo Coloma Correa (2017, p. 53): «... hay un tipo de razonamiento dogmático que busca sacar rendimiento a las disposiciones normativas vigentes; un tipo de razonamiento epistémico en que se controla la producción de conocimientos en términos consistentes con la manera de operar en contextos con un fuerte compromiso hacia “lo verdadero”; y un tipo de razonamiento lógico que propende a la construcción de narraciones que controlan la extensión de los saltos argumentales resguardando que no se incurra en absurdos o sinsentidos».

20 Na mesma linha, Antonio Magalhães Gomes Filho (2013, p. 127) leciona que o primeiro momento do processo valorativo é constituído pela aferição isolada sobre a qualidade dos dados probatórios obtidos e produzidos, sendo o conjunto das operações inferenciais realizado em um segundo momento, a partir do material idôneo, no sentido de se atingir o resultado probatório. Em conclusão análoga, anotem-se os escólios de Rodigo Coloma Correa (2017, p. 45), nos seguintes termos: «... con el primero se llama la atención respecto de la calidad de la información suministrada por los medios de prueba. El foco está puesto eminentemente en ciertas cualidades de los medios de prueba a los efectos de reportar verídicamente un hecho y, a la vez, en la plausibilidad del mensaje comunicado».

21 O art. 728, da LECrim reza: «No podrán practicarse otras diligencias de prueba que las propuestas por las partes, ni ser examinados otros testigos que los comprendidos en las listas presentadas». O art. 729, § 3º, por sua vez, dispõe, verbis: «Se exceptúan de lo dispuesto en el artículo anterior: […] § 3.º Las diligencias de prueba de cualquiera clase que en el acto ofrezcan las partes para acreditar alguna circunstancia que pueda influir en el valor probatorio de la declaración de un testigo, si el Tribunal las considera admisibles».

22 Destaca-se, por necessário, que, enquanto o processo penal brasileiro, tirante o procedimento do Júri, divide a persecução em uma etapa pré-judicial e outra judicial, outros sistemas possuem três etapas: fase de investigação, fase intermediária de preparação do juízo oral e o próprio juízo oral.

23 Nesse aspecto, o Tribunal Supremo espanhol, no ATS 161/2002, de 23 de janeiro de 2002, afasta a juntada de novas provas em momento processual inoportuno por não se caracterizar como metaprova, uma vez que, nesse caso concreto, as provas se projetariam sobre o enunciado fático principal.

24 Nesse sentido, por exemplo, o seguinte trecho de julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro: «3. Consoante o art. 396-A do Código de Processo Penal, o rol de testemunhas deve ser apresentado no momento processual adequado, ou seja, quando da apresentação da resposta preliminar, sob pena de preclusão. Em respeito à ordem dos atos processuais, não configura cerceamento de defesa o indeferimento do pedido extemporâneo de complementação do rol de testemunhas, a fim de acrescentar uma nova testemunha» (STJ, Quinta Turma, HC 602.742/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 25/08/2020, DJe 31/08/2020).

25 Os sistemas chileno e panamenho admitem expressamente a possibilidade de o Tribunal, em juízo oral, autorizar a recepção de prova não anunciada na fase intermediária do procedimento criminal. Uma das hipóteses se refere, justamente, ao caso de haver controvérsia relativa à fiabilidade da prova oferecida em tempo e forma adequados, com o escopo específico de, ao apresentar algum elemento adicional, esclarecer a cizânia em torno de tal ponto, desde que não tivesse sido possível prever, anteriormente, a necessidade da prova sobre outra prova. Vide, nesse sentido, os artigos 336, II, do CPP chileno e 385 do CPP panamenho.

26 Geraldo Prado (2015, p. 31-32), ao mencionar Baytelman e Duce, sustenta que não há confianças preestabelecidas, sendo que tudo remete à linguagem da prova e da sua idoneidade concreta. O autor conclui que o princípio da desconfiança, somado ao que chama de princípio da mesmidade, são essenciais para minimizar os riscos de incriminação imprópria.

27 Para uma discussão referente à presunção de credulidade, vide as correntes presuntivistas (não reducionistas), não presuntivistas (reducionistas) e dualista da epistemologia do testemunho apresentadas em Ramos (2018, p. 73-83).

28 Inclusive, aduz Alfred Tarski (2007, p. 223-224) que «na verdade, demonstramos cada sentença com base em outras sentenças, demonstrando outras sentenças com base em mais outras sentenças, e assim por diante. Se quisermos evitar tanto um círculo vicioso como uma regressão infinita, o processo deverá ser descontinuado em algum ponto». Alex Stein (2013, p. 252) averba que as inferências judiciais devem culminar em algum ponto, sendo tal decisão mais estratégica do que epistêmica: «Terminar en un cierto punto es decidir estratégicamente acerca de los límites de la indagación judicial, más que decidir epistémicamente sobre sus contenidos».

29 É clássica a discussão sobre o regresso infinito das cadeias de justificação na teoria do conhecimento (vide Pardo, 2005, p. 321-392 e p. 333). O problema do regresso ao infinito das cadeias de prova é tratado com mais profundidade, a partir da teoria funderentista de Susan Haack, em Salgado (2023, no prelo).

30 Em defesa de presunção relativa de fiabilidade, vide Dallagnol e Câmara (2019, p. 543).

31 São as palavras de Perfecto Ibáñez (2006, p. 79).

32 Em termos gerais, são os escólios de Carnéades, resgatados por Douglas Walton (2002, p. 141-142): «We can always be mistaken, and sometimes we are in fact mistaken. But nevertheless, if a proposition is based on a presentation that is apparently true, then that proposition should, for practical purposes, be accepted as true, subject to further incoming presentations or other evidence that might come to be available in the future, that would show that it is false. So this set of apparently true presentations furnishes us with a basis for accepting propositions as true, even though it is not an infallible basis».

33 Vide, por exemplo, discussões sobre a cizânia referente aos filtros de admissibilidade em Badaró (2016, p. 219-260).

34 Michele Taruffo (1970, p. 25-27) apresenta uma distinção entre relevância lógica e jurídica. Para o autor, relevância jurídica representa um critério para individualização da «juridicialidade» do fato, ou seja, de sua correspondência a um tipo normativo e, portanto, de sua aptidão para produzir efeitos jurídicos, como consequência do estabelecimento de uma relação entre o mesmo fato e uma norma. Assim, «fato relevante» é equivalente ao que se denomina de fato jurídico ou fato principal. Segundo Michele Taruffo, o critério da relevância jurídica não permite que os fatos secundários sejam qualificados como relevantes.

35 Susan Haack (2015, p. 318) aduz que o filtro de relevância não é puramente lógico, mas também é uma questão factual. Deveras, a relevância em si é aferida a partir da probabilidade de um determinado meio de prova possui para, potencialmente, influenciar a averiguação da verdade e pressupõe o uso de máximas de experiência que reaparecerão no contexto valorativo (nesse sentido, Coloma Correa, 2017, p. 39-40). Há quem entenda, ademais, que a relevância é medida em graus: existem provas que podem ser muito, bastante, medianamente ou escassamente relevantes (por todos, Coloma Correa, 2017, p. 39-40).

36 Na mesma linha, Juan Sebastián Vera Sánchez (2017, p. 177) aduz que a relevância, se entendida como conexão lógica entre prova e fatos, não dá resposta aos meios de prova que possuem a função de demonstrar enunciados fáticos sobre a fiabilidade de outras provas, salvo se se vincular o seu conceito ao de probabilidade de ocorrência.

37 Em algumas ocasiões, a relação entre a hipótese fática e o enunciado probatório é direta, a robustecer a potencial probabilidade de se ter como verdadeira a hipótese com a admissão da prova, o que a faz relevante. Outras vezes, a prova é relevante para a hipótese, mesmo se a relação entre elas não for imediatamente aparente. Em outros casos, essa relação de relevância entre o enunciado probatório e o enunciado fático depende da prova de outra proposição fática. Assim, supõe-se um homicídio praticado com arma de fogo. Tem-se a hipótese de que A manipulou uma arma. A prova obtida da análise papilar será relevante, ou seja, tornará mais provável a hipótese de autoria do que não provável, a depender de quanto mais provável a arma manuseada por A venha ter sido utilizada para prática do crime (Friedman, 1997, p. 58-59). Em suma, se se concluir que a arma manuseada por A não é o instrumento da prática criminosa, o resultado de um exame papilar não será relevante à hipótese fática. Ao contrário, se a arma for considerada instrumento do crime, o exame papilar será relevante.

38 Aproximadamente nesse mesmo sentido, Ubertis (2021, p. 199).

39 A aceitação de uma proposição como mais ou menos provada/justificada epistemicamente depende, segundo Susan Haack (2013, p. 79), de alguns critérios, aptos a aumentarem ou diminuírem o grau de justificação que alguém possui para crer em algo. São eles: i) quanto de apoio à hipótese é oferecido pelas provas (quão forte é a conexão entre a prova e a hipótese e, assim, quanto mais forte a conexão, mais apoio à hipótese e, em consequência, mais ela estará justificada); ii) quão sólida é a prova em si mesma considerada, independentemente do suporte fornecido por outros enunciados ou pela aceitação da hipótese em questão como verdadeira (solidez ou segurança independente); iii) quão completas/disponíveis estejam tendencialmente as provas relevantes (completude ou abrangência). Tais parâmetros ou cláusulas de justificação, individual ou conjuntamente graduais, são complementares, podendo apresentar-se em maior ou menor medida (Haack, 2015, p. 295); não simétricos e compensáveis, no sentido de que a diminuição de um pode ser compensada com o aumento do outro (Haack, 2008, p. 258). Os critérios erigidos por Susan Haack se relacionam, em alguma medida, com as regras de valoração apresentadas por Daniel González Lagier, conforme reconhecido pelo próprio catedrático da Universidade de Alicante (2020, p. 13 e seguintes). Assim, por exemplo, o autor averba que o grau de apoio se relaciona com o que ele chama de pertinência, com a diversidade das provas, com o grau de probabilidade da máxima de experiência e com a maior força da hipótese aceita frente às demais conjecturas refutatórias. A solidez independente, por seu turno, se relaciona com a fiabilidade das provas e com a higidez das generalizações empíricas, enquanto a completude ou abrangência se relaciona com a riqueza ou soma dos elementos de provas relevantes, favoráveis ou desfavoráveis, que permitem atribuir valor às proposições em conflito.

40 Em sentido aproximado, ver Anderson et al. (2005, p. 63).

41 Tal construção é fruto do insight do professor Jordi Ferrer Beltrán em banca de defesa da dissertação que, após avaliação, originou a obra da qual derivou o presente artigo. Mais uma vez, agradeço ao professor da Universidade de Girona pelas suas generosas contribuições, considerações e críticas ao trabalho. Ricard Friedman aparentemente concebe metarrelevância de forma diversa. Em sua visão (1997, p. 67-68), há situações em que a prova tem um valor insubstancial para o caso, mas é passível, por exemplo, de influenciar o julgador negativamente em relação ao réu. Um indivíduo é acusado de furto usando uma tesoura para cortar uma cerca que lhe conferiria acesso a um local, por exemplo. A prova apresentada pelo Ministério Público de que esse indivíduo cometeu crimes semelhantes (sob o pretexto de demonstrar a capacidade de o réu cortar cerca), insignificante para a solução do caso em si, porquanto produz pouca informação para o acertamento fático, acaba por influenciar o julgador quanto à propensão do réu no cometimento de crime dessa espécie. Essa prova é, em sua concepção, metarrelevante.

42 Corretamente, Ho Hock Lai (2008, p. 8-9) averba que um fato só ganha sentido a partir de um contexto institucional. Na mesma linha, Paolo Ferrua (2018, p. 84). Assim também asseveram Terence Anderson, David Schum e William Twining (2005, p. 90), nos seguintes termos: «In determining whether evidence is relevant, the analyst must answer the question, ‘Relevant to what?’ The “what” is the hypothesis».

43 Na linha desenvolvida por Gustavo Henrique Badaró (2016, p. 226-227), a inadmissão probatória por superfluidade não é um critério lógico-racional ou epistemológico, mas um parâmetro que visa a tutelar o princípio da economia processual, aliada à necessidade jurídico-processual de se colocar termo ao processo em tempo determinado.

44 Para uma distinção entre as chamadas provas pré-constituídas, com admissibilidade apreciada pelo julgador a posteriori a seu ingresso no processo e de necessária validação processual por meio do contraditório, como o são os documentos, e as denominadas provas constituendas, cuja formação se encontra inserida no curso do processo, como sucede, por exemplo, com o depoimento das testemunhas, vide Badaró (2014, p. 167-168) e Taruffo (2016, p. 180-181).

45 Atribuir o caráter substancial à relevância da prova é uma proposta apresentada por Richard Friedman (1997, p. 65).

46 Sobre a função instrumental da metaprova, traz-se o seguinte trecho da SAP B (Audiência Provincial de Barcelona) 151/2020, de 10/03/2020: «La jurisprudencia del Tribunal Supremo admite de forma crítica la eficacia probatoria incluso su admisibilidad - de las pruebas periciales que versen sobre la credibilidad de los testigos, que habitualmente son también quienes aparecen como víctima del delito. Se trata de una prueba singular, dado que tiene como objeto la veracidad de una prueba personal; es decir, es una prueba sobre la prueba. Su función es estrictamente instrumental: aportar al proceso conocimientos validados por la ciencia sobre estándares de veracidad de los testimonios y, con tal carácter, puede constituir un medio hábil para la valoración de determinadas declaraciones…».

47 O Tribunal Supremo espanhol erige a importância de uma avaliação mais contundente para viabilizar a admissibilidade da metaprova. Nesse sentido, aponta a STS 925/2003, de 19/06/2003. Na mesma linha, tem-se o caso clássico de análise de admissibilidade de metaprova, já enfrentado em diversas oportunidades pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro, referente à realização ou não de perícia para identificação de voz captada em interceptações telefônicas. Assim, ao também demonstrar maior rigor à admissibilidade da metaprova, a Corte entendeu que a perícia vocal é prescindível, salvo quando houver dúvida plausível que justifique a medida. Nesse sentido, ver, por exemplo: STJ, Quinta Turma, HC 453.357/SP, Min. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 16/08/2018, DJe 25/08/2018; STJ, Quinta Turma, AgRg no HC 445.823/PR, Min. Rel. Felix Fischer, j. 16/08/2018, DJe 21/08/2018; STJ, Quinta Turma, HC 409.551/RJ, Min. Rel. Ribeiro Dantas, j. 05/10/2017, DJe 11/10/2017; STJ, Quinta Turma, AgRg no HC 413.842/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 03/10/2017, DJe 11/10/2017.

48 Para um aprofundamento sobre a análise da possibilidade de produção de metaprova de ofício pelo juiz, vide Salgado (2023, no prelo).

49 Aliás, é o que parece estabelecer, quanto à fiabilidade de uma testemunha, a regra 608 (a) do Federal Rules of Evidence.

50 Importante destacar que, em casos de violência de gênero, a admissão de determinadas metaprovas deve passar por uma análise ainda mais rigorosa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, no Caso Veliz Franco e outros vs. Guatemala, afirmou que «Segundo determinadas pautas internacionais em matéria de violência contra a mulher e violência sexual, as provas relativas aos antecedentes sexuais da vítima são, em princípio, inadmissíveis, pois a abertura de linhas de investigação sobre o comportamento social e sexual prévio das vítimas em casos de violência de gênero não é mais do que a manifestação de políticas e atitudes baseadas em estereótipos de gênero» (CIDH, Caso Veliz Franco e outros vs. Guatemala, sentença de 19/05/2014, § 209). Por seu turno, o artigo 54 da Convenção do Conselho da Europa sobre Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica de 11/05/2011 reza que «as Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para que os meios de prova relacionados com os antecedentes sexuais e a conduta da vítima só sejam admissíveis em qualquer processo civil ou penal quando tal for relevante e necessário». Ao que parece, é o sentido que pode vir a ser conferido ao novel artigo 400-A do Código de Processo Penal brasileiro, verbis: «Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos». Assim, ao se referir a «elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos», o mencionado inciso pode ser interpretado como uma vedação à produção de metaprova, caso se compreenda, neste caso, que o objeto de apuração corresponde ao objeto do processo, ou seja, aos enunciados fáticos principais.

51 Nesse diapasão, por exemplo, o Tribunal Supremo espanhol, na STS 679/2019, de 23/01/2020, exige plausibilidade concreta para considerar como rompida a cadeia de custódia. Na mesma linha, STJ, Quinta Turma, AgRg no RHC 153.823/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 29/09/2021, DJe 04/10/2021.

52 Ao reconhecer o direito à metaprova nesses lindes, vale mencionar o acórdão STJ, Quinta Turma, RHC 74.655/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 06.12.2016, DJe. 15.12.2016: «... No sistema acusatório, cada parte do processo penal tem seu papel delineado de modo a fortalecer a dialética, possibilitando à acusação a produção da prova necessária a demonstrar a efetiva prática da conduta imputada ao réu e, da mesma forma, autorizando-se a defesa à produção da contraprova, apta a desconstituir a diligência incriminadora. Nesse contexto, não pode ser considerado impertinente o pedido de perícia no equipamento de gravação [...] A prudência recomenda seja privilegiada a ampla defesa na situação retratada, por meio do efetivo contraditório e da paridade de armas, consistente na possibilidade de a defesa realizar a contraprova relativa à prova trazida pela acusação. Com efeito, tendo o Ministério Público se utilizado de gravações ambientais para formular acusações, nada mais coerente que a defesa possa questioná-las, principalmente no caso dos autos, em que há indícios de manipulação. 5. Existindo possibilidade concreta de adulteração e mesmo exclusão/substituição do aparelho de escuta/imagem, como resultado da gravação ambiental judicialmente autorizada e realizada na fase investigativa, viola a garantia à ampla defesa a decisão que indefere pleito de realização de perícia técnica tendente a demonstrar a integralidade e higidez do material em questão...». Apesar de o julgado se referir a «contraprova», não há dúvidas que a abordagem é sobre metaprova.

53 Expressão de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2019, p. 319-320).

54 A dimensão mais óbvia do contraditório, apesar de ser uma garantia com espectro amplo, é dirigida tradicionalmente ao processo de formação da prova e a influenciar dialeticamente no momento valorativo, não ao processo de admissibilidade probatória. Nesse sentido, é o que aparenta ser o núcleo central do art. 6.3, letra d, da Convenção Europeia de Direitos Humanos ao estabelecer que o acusado de um delito tem direito a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação. Na mesma linha, a Convenção Americana de Direitos Humanos regula, em seu art. 8.2, letra f, o direito dos acusados de interrogar as testemunhas presentes no tribunal.