Quaestio facti. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio
Quaestio facti. International Journal on Evidential Legal Reasoning
Sección: Ensayos
2023 l N. 4 pp. 123-143
Madrid, 2023
DOI: 10.33115/udg_bib/qf.i1.22814
Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales
© Caio Badaró Massena
ISSN: 2604-6202
Recibido: 11/08/22 | Aceptado: 17/01/23| Publicado online: 27/01/23
Editado bajo licencia Reconocimiento 4.0 Internacional de Creative Commons

ERRO JUDICIÁRIO E RECONHECIMENTO DE PESSOAS: LIÇÕES EXTRAÍDAS DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

Caio Badaró Massena

Bacharel em direito
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Mestrando em direito processual penal
Universidade de São Paulo (USP)
Advogado.
https://orcid.org/0000-0002-9940-9759

RESUMO: O presente trabalho pretende extrair, a partir da trajetória do reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro, lições que possam contribuir para a evitação do erro judiciário. Para tanto, analisar-se-á a evolução jurisprudencial sobre o tema do reconhecimento e o discurso acerca do respeito às formalidades do art. 226 do código de processo penal brasileiro. Em seguida, com base em revisão bibliográfica de trabalhos sobre processo penal, prova judicial e psicologia do testemunho, buscar-se-á extrair algumas lições oferecidas por esta experiência, sobretudo no que diz respeito ao equívoco em apostar na superioridade moral e cognitiva dos juízes como remédio para as ilegalidades no âmbito da prova e à importância de se levar a ciência a sério, seja no desenho legislativo sobre os meios de prova, seja na atividade judicial de valoração probatória.

PALAVRAS-CHAVE: erro judiciário, reconhecimento de pessoas, legalidade probatória, prova e ciência.

JUDICIAL ERROR AND EYEWITNESS IDENTIFICATION: LESSONS DRAWN FROM THE BRAZILIAN EXPERIENCE

ABSTRACT: The present work intends to elicit lessons from the trajectory of the eyewitness identification in the Brazilian criminal procedure that can contribute to the avoidance of judicial error. In order to do so, the work will analyze the jurisprudential evolution on the issue of eyewitness identification and the discourse on respect for the formalities of rule 226 of the Brazilian Criminal Procedure Code. Then, based on a bibliographic review of works on criminal procedure, legal evidence, and psychology of testimony, we will seek to extract some lessons offered by this experience, especially with regard to the mistake in relying on the moral and cognitive superiority of judges as a remedy for evidentiary illegalities and the importance of taking science seriously, whether in the legislative design on the means of proof, or in the judicial activity of probative valuation.

KEYWORDS: judicial error, eyewitness identification, evidentiary legality, evidence and science.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO.— 2. A TRAJETÓRIA DO RECONHECIMENTO DE PESSOAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO DESDE 1941.— 3. LIÇÕES: A IMPORTÂNCIA DA LEGALIDADE PROBATÓRIA E O PAPEL DA CIÊNCIA NA ATIVIDADE PROBATÓRIA.— 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.— REFERÊNCIAS.

1. INTRODUÇÃO

Os trabalhos recentes sobre prova judicial costumam destacar o caráter probabilístico do raciocínio empregado pelos juízes (por todos: Gascón Abellán, 2010, p. 43). Diz-se, nesse sentido, que no processo judicial «nunca um conjunto de elementos probatórios, por grande e relevante que seja, permitirá alcançar certezas racionais sobre a verdade de uma hipótese» (Ferrer Beltrán, 2007, p. 91, tradução livre). Disto decorre, naturalmente, a possibilidade sempre presente de erros judiciários materiais: aceitar como provado algo que não aconteceu ou não aceitar como provado algo que aconteceu 1.

À inevitável possibilidade de erro soma-se o fato de que em processos judiciais raramente reúne-se um conjunto completo, grande e rico de provas. Ao revés, juízes trabalham com informações limitadas e precisam decidir em um contexto de inevitável incerteza fática (Nance, 2018, p. 16). Em outras palavras, o processo judicial – o órgão julgador – precisa lidar com lacunas epistêmicas e várias formas de incerteza sobre os enunciados fáticos em disputa, potencializando o mencionado risco de erros (Tuzet, 2016, p. 104).

Como se vê, o erro fático não é um aspecto secundário do processo judicial. Não à toa, no tocante ao direito penal, a condenação de inocentes sempre esteve no centro das preocupações e foi ao longo da história vista como um escândalo moral e político. São conhecidas, quanto ao tema, passagens bíblicas (Deuteronômio 19:13; Gênesis 18:22-33), a «máxima de Trajano» citada por Ulpiano e as famosas fórmulas (proporções) de Blackstone, Fortescue e Lord Hale 2, todas a indicar que prevenir a condenação de um inocente é um mandato moral e político de alta intensidade, oriundo da experiência e do temor de que isto ocorra conosco, e cuja violação produz um verdadeiro escândalo institucional (Binder, 2021, p. 39).

Apesar desta tradicional preocupação, na doutrina brasileira o tema do erro judiciário no processo penal esteve, de algum modo, confinado às discussões sobre aspectos processuais do instituto da revisão criminal 3. Ainda assim, não foram infrequentes as abordagens que optaram por uma visão bastante restritiva da revisão criminal em prol da segurança jurídica e da coisa julgada 4.

Recentemente, contudo, dois fenômenos parecem ter reavivado as discussões sobre o tema. O primeiro diz respeito ao chamado boom editorial do discurso probatório nos países de tradição romano-germânica, que levou a um intenso debate sobre standards de prova, cuja função mais conhecida é justamente a distribuição de erro entre as partes 5. O segundo fenômeno —de maior impacto— foi o uso nos Estados Unidos da América (EUA) da prova de DNA para demonstrar a inequívoca inocência de pessoas injustamente condenadas, com a posterior consolidação dos seus resultados por instituições como o National Registry of Exonerations e o Innocence Project 6.

No Brasil, apesar da escassez de dados sobre erros judiciários, a recepção de trabalhos acadêmicos sobre a situação dos EUA (Garrett, 2012; Simon, 2012; Benforado, 2015) foi responsável por impulsionar o debate entre pesquisadores e processualistas penais. Os dados alarmantes sobre reconhecimento equivocado de pessoas naquele país (Garrett, 2012, p. 45-83; Innocence Project, 2020) juntaram-se, em terras brasileiras, à densa e longa produção bibliográfica de Lilian Stein e seus alunos no campo da psicologia do testemunho 7. A título de exemplo, pesquisa empírica publicada em 2015 pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça já indicava um cenário problemático no que diz respeito às provas dependentes da memória no processo penal brasileiro (Stein e Ávila, 2015).

Presente o sinal de alerta quanto à prática do reconhecimento de pessoas no país, a participação de instituições como a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Innocence Project Brasil tem sido decisiva para corrigir injustiças em casos particulares e inserir o tema no centro das discussões sobre erro judiciário 8.

A virada jurisprudencial no Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde o julgamento do Habeas Corpus 598.886 e a criação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de Grupo de Trabalho destinado a estudar o reconhecimento de pessoas em processos criminais, com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes, revelam que o assunto ganhou as devidas proporção e importância 9.

Neste trabalho, a partir da trajetória do reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro (item 2), buscar-se-á tirar algumas lições que possam contribuir para uma visão ampla do erro judiciário no sistema de justiça criminal, sobretudo em relação à legalidade probatória e à contribuição da ciência para confecção de um adequado desenho institucional e para o momento de valoração probatória (item 3).

2. A TRAJETÓRIA DO RECONHECIMENTO DE PESSOAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO DESDE 1941 10

A influência do Codice di Procedura Penale italiano de 1930 (código rocco), de inspiração fascista, na elaboração do código de processo penal brasileiro de 1941 é bastante conhecida (Gloeckner, 2018; Malan, 2015). Não à toa, o artigo 226 do código de processo penal brasileiro mimetiza o art. 361 daquele diploma italiano, embora tenha deixado de repetir formalidades importantes (indagação sobre possível sugestão) 11 e flexibilizado (com a inclusão do «se possível» no inc. II do art. 226) o número de pessoas semelhantes com as quais o suspeito deveria ser comparado.

O fato é que à época já estavam disponíveis ao legislador diversos estudos sobre a falibilidade do reconhecimento de pessoas e sua influência em erros judiciários. Em 1924, em seu clássico La critique du témoignage, François Gorphe (2003, p. 215, tradução livre) alertava: «os erros de reconhecimento não podem contar-se; um volume não bastaria para relatar todos os que foram descobertos, que, por outro lado, não foram senão uma pequena parte». O autor advertia, ainda, com base em estudos empíricos, acerca da existência de diversos fatores que poderiam impactar na acurácia do reconhecimento, entre os quais a relatividade da semelhança, as condições de luminosidade, o influxo da emoção, o tempo de exposição e principalmente a sugestionabilidade do procedimento utilizado no ato de reconhecimento (p. 220-223) 12.

É de se notar, portanto, que duas ideias já estavam disponíveis ao legislador e, sobretudo, ao Poder Judiciário 13. A primeira refere-se à percepção de que o reconhecimento de pessoas era causa de diversos erros judiciários devido à sua fragilidade probatória; a segunda, que a confiabilidade do reconhecimento dependia diretamente do procedimento/método utilizado.

Esta primeira ideia era expressa em decisões que chamavam atenção para a necessidade de se analisar os diversos fatores de erro no reconhecimento (Ap. 178.435 TACrimSP) e negavam até mesmo o seu caráter probatório. No último sentido, dizia-se: «[o] reconhecimento não é um meio de prova ou elemento de prova, mas, apenas, um ato instrutório informativo, destinado a assentar o pressuposto e avaliar a credibilidade de um elemento de prova» (ACrim 98.904, TJSP); «[é] o reconhecimento um ato instrutório informativo, um elemento de controle da prova, e não, em si, um decisivo meio de prova» (Ap. 50.579, TACrimSP) 14.

No que diz respeito ao impacto do método empregado para realizar o reconhecimento e à importância das formalidades do art. 226, é interessante observar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na década de 1960, que dizia: «[n]ão tem valor jurídico se não obedeceu à forma do art. 226 do C.P.P. e sofreu retratação de ambas as vítimas, sem que outras provas o confirmassem» 15; «[o] reconhecimento de pessoa deve obedecer à forma imperativamente imposta pelo art. 226 do código de processo penal» 16.

Decisões de distintos tribunais pontuavam também a imprescindibilidade do respeito às formalidades: «[n]ulo é o reconhecimento do réu quando a autoridade policial se limita a apresentar o acusado à vítima, como tendo sido seu assaltante» (Ap. 99.101, TACrimSP); «nenhum valor terá ele como prova se não foram observadas, como cautela mínima, as determinações do art. 226 do CPP)» (Rev. 120.826, TACrim); «[n]ão tendo sido observadas essas formalidades [do art. 226, I], destituído de valor se torna esse meio de prova» (ACrim 42.381, TJSP); «[i]ndispensável, pena de precariedade da prova, observância rígida das cautelas dos arts. 226 e seguintes do CPP» (Rev. Crim. 39.322, TACrimSP) 17. Nesse ponto, sobre o entendimento do Tribunal de Justiça da Guanabara, no julgamento da Revisão Criminal 5.461 em 1968, Heleno Fragoso (1982, p. 521) comentava:

As formalidades de que se cerca o reconhecimento de pessoas são, em certa medida, a própria garantia da viabilidade deste reconhecimento como prova, e a história dos erros judiciários nô-lo atesta. Por outro lado, o livre convencimento na apreciação das provas não pode significar uma abusiva liberdade subjetiva, que alcance até mesmo a produção da prova [...]. O processo penal civilizado não se desenvolve ‘a ferro e fogo’, mas segundo as formas que o legislador estipulou como as mais aptas a gerarem um resultado isento de erros. [...] O art. 226 CPP fixa regras de observação obrigatória para o reconhecimento de pessoas ou coisas, procurando diminuir a larga margem de erro que os reconhecimentos em geral apresentam.

A importância dos requisitos previstos no art. 226 foi observada também por Camargo Aranha, para quem o reconhecimento constitui «ato eminentemente formal, requerendo para sua validade a obediência dos pressupostos exigidos pelo art. 226» (1987, p. 169) 18. Por outro lado, sob o argumento da não taxatividade dos meios de prova, parte da doutrina já admitia o uso do reconhecimento em desrespeito às formalidades. Na opinião confusa de Tornaghi (1978, p. 120-121), «a inobservância da forma acarreta a inexistência desse ato», que poderia ser, contudo, um elemento de prova distinto; em suma, um ato de reconhecimento que não é prova de reconhecimento, mas outro meio de prova (?) que pode convencer o juiz. A fim de «salvar» o reconhecimento mal realizado, a doutrina também lançava mão do princípio do livre convencimento (Marques, 1961, p. 334).

Em 1994, ao julgar o Habeas Corpus 70.936, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal reafirmou (com menção expressa) sua jurisprudência, estabelecendo que a «realização sem observância do procedimento determinado imperativamente pelo art. 226 C.Pr.Pen. elide sua força probante e induz à falta de justa causa para a condenação» 19.

Todavia, o debate sobre a admissibilidade do reconhecimento por fotografia e sua ampla aceitação na jurisprudência 20 parece ter servido de impulso para, em algum grau, desvirtuar a discussão sobre a necessidade de se observar as formalidades do art. 226. De todo modo, é curioso que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de início, inclinou-se no sentido de que o valor probante do reconhecimento fotográfico dependeria da corroboração por outros elementos de prova 21.

Nada obstante, o giro jurisprudencial mais brusco, que viria a somar-se com os debates sobre reconhecimento fotográfico, se deu com o julgamento do Habeas Corpus 77.576 pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, apesar da divergência do Min. Marco Aurélio, fixou-se o entendimento de que

[o] reconhecimento de pessoas, feito perante o juiz em audiência, é válido como meio de prova. Prescinde das formalidades previstas no CPP, art. 226, eis que ocorrido sob o princípio do contraditório. Ao contrário do que ocorre na fase pré-processual. No inquérito policial sim, deve ser obedecido o disposto no CPP, art. 226, com a lavratura do auto de reconhecimento 22.

A partir de então consolidou-se a compreensão de que as formalidades do art. 226, sobretudo a do inc. II, consistiriam tão somente em recomendações legais, e não exigências, admitindo-se sua constante fragilização 23.

Sob a proteção desta jurisprudência, no limite, o reconhecimento de pessoas passou a estar à mercê da vontade das autoridades policiais e, principalmente, dos juízes. Abandonou-se os «cuidados elogiáveis», que já estavam até mesmo ultrapassados diante dos novos estudos sobre psicologia do testemunho, para se adentrar no campo das conveniências – ou melhor: da irregularidade endêmica (Matida, 2021, p. 143). O resultado conhecido foi trágico, principalmente para as camadas desfavorecidas da população. A ampla utilização dos odiosos álbuns de suspeitos em delegacias de polícia 24, a preferência pela técnica sugestiva de show up 25, o reconhecimento via foto em rede social e por meio do envio de imagens pelo WhatsApp à vítima (Matida e Cecconello, 2021) são algumas das práticas, absolutamente desaconselhadas pela ciência, que passaram a constituir a regra no processo penal brasileiro. Como dito, depois de duas décadas, o resultado tem sido dramático: diversos erros judiciários com o envio de inocentes para a prisão (provisória ou definitiva).

Diante desse (problemático) cenário, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça promoveu um novo giro jurisprudencial, em sentido oposto ao que vinha caminhando. No julgamento do já mencionado Habeas Corpus 598.886, entendeu-se que:

1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo 26.

Tal entendimento foi reafirmado pela 6ª Turma e, depois, acompanhado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça 27. Ademais, a mudança de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça parece já repercutir, direta ou indiretamente, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 28.

É de se observar, ainda, que, em 7 de janeiro de 2022, o 2º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Desembargador Marcus Henrique Basílio, publicou recomendação para que os magistrados reavaliem, com a urgência necessária, as decisões em que a prisão preventiva do acusado foi decretada tão somente com base no reconhecimento fotográfico operado sem a observância do disposto no artigo 226 do CPP 29. A recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já reverbera nos Tribunais de Justiça de São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro e nos Tribunais Regionais Federais da 1ª e da 2ª Região 30.

Em março de 2022, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu mais um acórdão paradigmático no campo do reconhecimento de pessoas. Além de avançar em outros temas (p.e., revisão do entendimento de que o reconhecimento fotográfico pode funcionar como etapa preparatória do reconhecimento presencial), o Min. Rogerio Schietti Cruz assinalou em seu voto que:

[...] as prescrições legais relativas às provas cumprem não apenas uma função epistêmica, i. e., de conferir fiabilidade e segurança ao conteúdo da prova produzida, mas também uma função de controlar o exercício do poder dos órgãos encarregados de obter a prova para uso em processo criminal, vis-à-vis os direitos inerentes à condição de suspeito, investigado ou acusado 31.

Sem embargo do inquestionável avanço na matéria, é preciso reconhecer que a equivocada jurisprudência, que entendia o artigo 226 do código de processo penal brasileiro como mera recomendação, causou, e ainda causa, prejuízo irreparável a muitas pessoas. Por esse motivo, convém sublinhar alguns aprendizados que a trajetória do reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro pode nos oferecer.

3. LIÇÕES: A IMPORTÂNCIA DA LEGALIDADE PROBATÓRIA E O PAPEL DA CIÊNCIA NA ATIVIDADE PROBATÓRIA

Testemunha dos horrores praticados na Alemanha no início do século passado, Eberhard Schmidt (1957, p. 20-21, tradução livre) abriu seu livro com um alerta:

O fato de que o direito processual prescreva formas para o desenvolvimento da atividade da administração da justiça e exija absoluta observância destas formas, encontra seu sentido profundo e sua justificação na experiência de séculos acerca do arbítrio da autoridade e dos perigos de julgamentos desprovidos de formalidades.

Décadas mais tarde, Hassemer (2005, p. 192-193) —e não deve ser coincidência a mesma nacionalidade de ambos— destacava que, sendo o processo penal (em todas as suas fases) um evento perigoso, o sistema jurídico não poderia abandoná-lo à casualidade ou à boa vontade dos participantes, sob o risco de tornar-se um instrumento nas mãos dos indivíduos ou de grupos isolados contra os demais.

Como se vê, assim como em relação a todo o sistema de garantias (Binder, 2013, p. 113), também a exigência de respeito à legalidade probatória consiste em ferramenta concreta de defesa da liberdade, construída historicamente para reparar prejuízos que o abuso de poder penal causou e continua a causar. Não se trata de formalismo vazio, de declaração solene de professores ou de particular concepção filosófica, mas de garantia fundada no temor justificado, ao longo dos últimos séculos, ao abuso do poder penal do Estado 32.

Conforme abordado acima, a aposta dos tribunais superiores brasileiros (no que se refere ao reconhecimento de pessoas) caminhou no sentido inverso: a confiança na superioridade moral do juiz em detrimento da legalidade probatória 33. Apostou-se na capacidade de o juiz, ao formar livremente seu convencimento em cada caso, «separar o joio do trigo» e, desse modo, chegar à decisão mais justa.

Porém, o número de habeas corpus que chegaram no Superior Tribunal de Justiça em pouco tempo desde a virada jurisprudencial no final de 2020 e levaram à absolvição/liberdade de diversas pessoas revela que o controle dos juízes (e dos tribunais de justiça) é, em bom número de casos, ilusório. Não é possível ignorar, por exemplo, a confiança que juízes, em geral, atribuem aos atos praticados por agentes policiais, compensando ilegalidades com confiança na suposta fé pública destes.

Além da aposta na superioridade moral dos juízes, ao longo da consolidação do entendimento de que o art. 226 do código de processo penal consistiria apenas em recomendação legal, é fácil perceber uma certa confusão entre a não taxatividade dos meios de prova (isto é, a aceitação das provas atípicas) e a produção da prova em desconformidade com o modelo legal (prova irritual) (Vieira, 2021, p. 157-160).

Neste ponto, é interessante reter a opinião de Giulio Ubertis, para quem a disciplina probatória é o resultado de opções normativas que encontram sua justificação em duas ordens de motivo que interagem entre si e são distinguíveis apenas para fins analíticos. Destaca o processualista italiano a existência de fundamentos epistêmicos e políticos, prevalecendo ora a exigência de determinar explicitamente um método para guiar a atividade probatória, ora a necessidade de salvaguardar determinados direitos (2017, p. 107).

No caso do art. 226 do código de processo penal, sem embargo de sua atual desatualização, as formalidades previstas, evidentemente, gozam de fundamento epistêmico, como os debates do início do século passado já informavam. Ademais, pouco esforço é necessário para perceber que a fundamentação dos tribunais para sua flexibilização nunca foi epistêmica, a fim de melhorar a qualidade da prova; ao contrário, o discurso baseou-se, em regra, numa suposta eficiência, que se sabe hoje ser incapaz de aumentar a qualidade da apuração dos fatos.

Mesmo a doutrina mais apegada à noção de instrumentalidade das formas assevera que o comprometimento da correção da sentença (= apuração da verdade) implicaria prejuízo, requisito necessário à decretação da nulidade do ato processual (Grinover et al., 2000 p. 27). Parece claro que, assim o sendo, a utilização de um meio de prova inerentemente pouco confiável, quando realizado em violação ao modelo legal, sob condições desfavoráveis e utilizando metodologia desaconselhada pela ciência, conduziria a um prejuízo a quem é reconhecido (e, claro, ao próprio sistema de justiça criminal). Curiosamente, na mesma toada da jurisprudência dos tribunais superiores, apesar de reconhecer a precariedade da prova quando desprezadas as formalidades, esta doutrina aposta na capacidade dos juízes no caso individual: «perderá bastante de seu vigor como prova, não se cuidando, contudo, de nulidade. O juiz poderá levar em conta o ato, dando-lhe a consideração que julgar adequada em face da falha ocorrida e no confronto com as demais provas produzidas» (Grinover et al., 2000, p. 164).

Ao tratar especificamente da relação entre reconhecimento de pessoas e erros judiciais no Chile, Duce (2020) tece comentários que coincidem em boa medida com o que ora se argumenta. O professor chileno, após diagnosticar a situação problemática em seu país, busca razões que expliquem a situação, observando o seguinte (p. 387, tradução livre):

A primeira [razão] é que parece existir uma concepção dominante que os potenciais problemas que poderiam ter essas provas são um tema de «valoração» da prova em juízo e não de admissibilidade segundo pude constatar em minha investigação (Duce, 2017b, p. 345-348). Trata-se de uma ideia muito própria da cultura probatória da qual se nutre nossa tradição jurídica que tradicionalmente depositou uma fé importante na capacidade dos juízes profissionais de resolver estes problemas sem afetar sua capacidade de decisão nos casos. O problema desta visão é que hoje sabemos que os juízes profissionais estão expostos de igual maneira a cometer erros e também têm alguns problemas importantes ao avaliar estas provas. Isso sem contar a existência de diversos vieses cognitivos que provêm mais de como todos os seres humanos funcionam, mesmo aqueles que desenvolvem profissões específicas.

Com efeito, esta confiança na superioridade moral (e cognitiva) dos juízes ignora que, de modo geral, o direito é uma prática excludente, e isso também se refere à atividade probatória. Como destaca Schauer (2016), o sistema jurídico retira de apreciação fatores e razões que um decisor ideal e livre de restrições tomaria como relevante. Faz isso, por vezes, para alcançar os objetivos de confiança, previsibilidade e estabilidade, mas também com o condão de limitar a discricionariedade de um conjunto altamente diverso de decisores e alcançar a separação de papéis de modo que os decisores somente decidam questões dentro dos limites da sua autoridade legítima. Regras probatórias nem sempre são feitas para decisores ideais que atuam em condições ideais, mas, como todas as regras reais, são parte da teoria do segundo-melhor. Sublinha o Professor da Universidade da Virginia, em lição que merece ser referida (Schauer, 2016, p. 333):

Em outras palavras, elas não são as regras da Epistemologia individual, mas da social. Regras excludentes podem ou não ser boas regras da Epistemologia social. Mas, uma lição que a Epistemologia em geral e, particularmente, a Epistemologia social pode aprender com o sistema jurídico é que as regras excludentes que parecem produzir resultados ruins em ocasiões individuais podem ainda, tal como as regras jurídicas em geral, ser aquelas que no decorrer do tempo, e para uma determinada população, produzam o maior número ou a maior porcentagem de boas decisões e o menor número ou menor porcentagem de decisões ruins.

Certamente, juízes prudentes, preocupados com o erro judiciário e estudiosos da psicologia do testemunho poderiam, diante de meras recomendações legais, até mesmo aperfeiçoar o procedimento do art. 226 do código de processo penal em sua prática. Essa, contudo, é uma aposta na epistemologia individual que desconsidera alguns aspectos importantes.

O primeiro diz respeito à mediação organizacional, porquanto a realidade do sistema penal é a das grandes organizações que, contando com milhares de pessoas, precisam dar conta de milhares de casos. Juízes, advogados, promotores de justiça, defensores públicos etc. estão imersos em grandes organizações, boas ou ruins, antigas ou modernas, eficientes ou ineficientes, mas que com seus modos, práticas, valores e culturas têm grande influência individual (Binder, 2013, p. 164-165; Marrero, 2015, p. 30-31).

O segundo aspecto relaciona-se ao fato de que o direito penal liberal se funda na busca por construir limites à atividade jurisdicional, para evitar a arbitrariedade e enfrentar o medo de condenar um inocente. Portanto, um sistema de garantias nunca pode fundar-se na maior capacidade pessoal do juiz, seja ela moral, cognitiva ou uma mistura de ambas (Binder, 2021, p. 74-75). Nós não devemos confiar em bons juízes, senão no conjunto de regras limitadoras que são construídas ao longo da história, que às vezes nos distanciam da justiça do caso, mas nos oferecem maior segurança coletiva, pois devem ser respeitadas por bons e maus juízes, independentemente do seu senso de justiça (Binder, 2021, p. 88).

Não se quer dizer, com o que se expõe, que juízes não devam ser educados em psicologia do testemunho. Pelo contrário, é fundamental que juízes sejam minimamente versados no tema, ainda mais no caso brasileiro, diante da desatualização do art. 226 do código de processo penal. A uma, porque a adequada conduta do juiz durante a produção da prova (informar que o autor do crime pode não estar presente entre os rostos apresentados; evitar dar feedback positivo para o reconhecedor, entre outras) contribuirá para a melhor qualidade da prova, sem qualquer violação ao modelo legal. A duas, porque lhes permitirá com maior segurança fazer o controle do ato de reconhecimento realizado durante a investigação preliminar. A três, porque uma correta valoração probatória dependerá do conhecimento sobre os fatores que podem influenciar a acurácia do reconhecimento.

Ademais, a aplicação pelos juízes de critérios seguros para controle e valoração do reconhecimento de pessoas, a nosso ver, poderá servir de estímulo ao legislador para que atualize o modelo legal desse meio de prova, conformando-o em consonância com as melhores práticas descritas pela ciência.

Essa, aliás, é a segunda lição que a trajetória do reconhecimento de pessoas pode oferecer ao processo penal brasileiro. O tema da prova judicial é jurídico, mas envolve também questões ligadas à teoria do conhecimento, à lógica, à psicologia e outras ciências (Gomes Filho, 2005, p. 304; Taruffo, 2011, p. 22; Ramos, 2018, p. 21-22) 34. Se confiar tão somente na superioridade moral e cognitiva dos juízes não parece ser uma boa opção, é fundamental que o legislador, ao dar conta de cada meio de prova, opte por um desenho institucional adequado aos avanços científicos de cada área, com respeito aos direitos e garantias fundamentais das pessoas envolvidas.

É imprescindível que a comunidade jurídica fomente o debate sobre a necessidade de se adequar a legislação aos achados científicos e apoie a construção de um correto desenho institucional, evitando-se discursos demagógicos que servem apenas à conservação de erros judiciários 35- 36. Esta contribuição ganha relevo considerando, sobretudo, que no momento está em discussão no Congresso Nacional brasileiro o Projeto de Lei 8.045/2010 sobre o novo código de processo penal.

Com efeito, a psicologia do testemunho, como ramo da ciência psicológica 37, dispõe hoje de um seguro arsenal metodológico para prática e análise da credibilidade do reconhecimento de pessoas que não pode ser ignorado em qualquer reforma legislativa. Embora sujeita a constantes atualizações, a psicologia do testemunho conta com fortes consensos e oferece-nos uma «sistematização das técnicas que podem favorecer uma maior qualidade do testemunho prestado por uma testemunha» (Diges, 2018, p. 70, tradução livre).

O conhecimento acumulado sobre as chamadas «variáveis do sistema» 38 – isto é, aqueles fatores que estão sob o controle do sistema de justiça e influem na qualidade do reconhecimento – é bastante amplo. Sabe-se, por exemplo, que as perguntas feitas à testemunha para que ela descreva o suspeito podem interferir em sua memória, daí a necessidade de que se evite perguntas fechadas, optando-se pelo relato livre e, quando preciso, pelas perguntas abertas (Poole e Lindsay, 1995; Demarchi e Py, 2009; Cecconello e Stein, 2020, p. 176; Wells et al., 2020, p. 9-10). São também conhecidos os efeitos das instruções prévias dadas à pessoa chamada a realizar o reconhecimento, com recomendação de que não lhe sejam fornecidas informações não ditas, bem como seja informada de que a autoridade responsável pelo ato não sabe quem é o suspeito, que o culpado pode não estar entre as pessoas as quais compõem o alinhamento, que é possível responder «não sei» e que a investigação continuará ainda que ela não identifique alguém (Wells et al., 2020, p. 20). A adoção do procedimento duplo-cego – quando o responsável por conduzir o reconhecimento não sabe quem é o suspeito nem qual sua posição no alinhamento – também é recomendada a fim de evitar informações ou comportamentos sugestivos, ainda que inconscientes (Cecconello e Stein, 2020, p. 181; Valentine e Fitzgerald, 2016, p. 136-137).

A psicologia do testemunho destaca também a importância do método utilizado, desaconselhado o uso de técnicas como show-up ou álbum de suspeitos e recomendando a utilização do alinhamento de pessoas (line-up) 39 (Clark e Godfrey, 2009; Clark, 2012; Cecconello e Stein, 2020, p. 177; Wells et al., 2020, p. 26-27; Cecconello et al., 2022, p. 182-183; Marmelstein, 2022, p. 170-174). Evidente que a formação justa do alinhamento, a fim de evitar alinhamentos tendenciosos, é bastante relevante. Recomenda-se, assim, que a escolha dos não-suspeitos (fillers) obedeça a dois princípios: nenhum rosto deve se sobressair em relação aos demais; os não-suspeitos devem atender às descrições oferecidas por quem realizará o reconhecimento da mesma forma que o suspeito (Cecconello e Stein, 2020, p. 180; Wells et al., 2020, p. 18; Cecconello et al., 2022). Além da recomendação de que cada alinhamento conte com apenas um suspeito (Wells et al., 2020, p. 19), outro fator relevante é o tamanho do alinhamento; a literatura especializada recomenda que o alinhamento seja composto por mais de quatro pessoas e idealmente por seis pessoas (suspeito + cinco fillers) (Juncu e Fitzgerald, 2021; Wells et al., 2020, p. 19; Diges, 2018, p. 77) 40.

Ainda no campo das «variáveis do sistema», convém mencionar a irrepetibilidade do reconhecimento de pessoas (caráter cognitivo de irrepetibilidade). A ideia básica é que o ato de reconhecer um rosto pode alterar a memória original; portanto, se a vítima identifica o suspeito, esse rosto torna-se atrelado à memória que ela possui do evento (Cecconello et al., 2018, p. 1063). Por isso se diz que um correto reconhecimento realizado em juízo não anula os efeitos deletérios do reconhecimento prévio feito incorreta e anteriormente em sede policial (Matida e Cecconello, 2021, p. 417-418).

Esses são exemplos de orientações baseadas em evidências e sujeitas a amplas discussões entre cientistas da área. Ignorar —ou, o que é pior, desdenhar— esse stock de conhecimento é, no limite, transigir com o erro judiciário. Levar o erro judiciário a sério é levar a ciência a sério ao desenhar o modelo legal de produção dos meios de prova. Como dito, qualquer reforma legislativa do diploma processual deve considerar o conhecimento científico disponível sobre o tema.

Acima defendeu-se que a aposta na capacidade moral e cognitiva dos juízes como compensação às ilegalidades probatórias não é um bom caminho a ser seguido para evitar erros judiciários. Contudo, como também se observou, uma correta valoração probatória depende do conhecimento sobre os fatores que podem influenciar a acurácia do reconhecimento. A importância de se atentar ao conhecimento científico sobre cada meio de prova, portanto, não se resume à confecção do respectivo desenho normativo.

Conforme Taruffo (2014, p. 137) assevera, «a valoração da prova consiste em determinar o valor probatório de cada elemento de prova em relação a um fato específico» e o primeiro passo para se estabelecer a conexão entre provas e fatos consiste em se averiguar a credibilidade de cada um desses elementos. A pergunta crucial acerca da credibilidade de um elemento de prova é a seguinte: «em que medida podemos crer no que diz esta prova?». Relativamente às provas dependentes da memória, essa pergunta levanta questões sobre objetividade e sensibilidade observacional (Anderson et al., 2015, p. 98-103), as quais dependem de conhecimentos sobre psicologia do testemunho para serem respondidas 41.

A correta e racional atribuição de credibilidade ao reconhecimento de pessoas, por sua vez, dependerá tanto do procedimento utilizado («variáveis do sistema») quanto das «variáveis de estimação», que costumam ser divididas entre as que se referem ao evento e as que se referem à pessoa que presenciou o evento. Fatores que influenciam a credibilidade de um reconhecimento, como, por exemplo, condições perceptivas (de distância e iluminação), duração do evento, existência de detalhes impactantes, utilização de arma de foto (weapon focus effect), número de criminosos, patologias, efeito de outra raça (cross race effect), entre outros (com indicação de ampla bibliografia: Cecconello e Stein, 2020; Manzanero, 2018, p. 147-167; Diges e Pérez-Mata, 2014), devem ser considerados na valoração da prova a partir sempre dos conhecimentos ofertados pela psicologia do testemunho.

Houvesse o sistema de justiça criminal brasileiro apostado não na superioridade moral e cognitiva dos juízes, mas nos conhecimentos científicos entregues pela psicologia do testemunho, parece-nos que o cenário seria bastante distinto do que se viu nas últimas décadas no processo penal brasileiro; é muito provável que diversos erros judiciários tivessem sido evitados.

Essas são algumas das lições que a experiência do reconhecimento de pessoas no processo penal brasileiro pode nos dar no campo da prova judicial e, no limite, em matéria de erro judiciário. A mudança na jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros foi um primeiro passo fundamental, mas há muito ainda para se avançar.

Os desafios enfrentados no Brasil, apesar de suas peculiaridades, podem ser verificados em outros países, de modo que observar as experiências de outros sistemas de justiça criminal é também uma tarefa importante para aprender com os seus acertos e equívocos, não apenas no que se refere ao uso equivocado do reconhecimento de pessoas, mas também no tocante às estratégias para reverter erros judiciários, reformar a legislação e alterar a prática dos atores do sistema de justiça 42.

Felizmente, o tema do reconhecimento de pessoas e dos erros judiciários decorrentes de falsos reconhecimentos está no centro das atenções no Brasil. Cada vez mais surgem estudos sobre o tema, dados são produzidos e atores do sistema de justiça se sensibilizam com o assunto. As lições extraídas aqui, contudo, não devem ficar limitadas a esse meio de prova. É de suma importância que se reflita sobre as provas periciais, documentais e, sobretudo, digitais a partir das mesmas lições. Pensar esses meios de prova considerando a experiência desastrosa do reconhecimento de pessoas e as apostas equivocadas do sistema de justiça criminal brasileiro contribuirá não apenas para desfazer injustiças, mas principalmente evitá-las 43.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Doutrina e jurisprudência brasileiras nem sempre deram a devida atenção ao tema do erro judiciário no processo penal. As recentes discussões sobre o reconhecimento de pessoas, e sua contribuição (negativa) para condenação/prisão de inocentes, vêm mudando esse cenário.

Ao observar a trajetória do reconhecimento de pessoas na jurisprudência, foi possível notar como as regras e requisitos do art. 226 do código de processo penal passaram de formalidades essenciais a meras recomendações legais. Essa última orientação foi influenciada por duas ideias claras: a confiança na superioridade moral e cognitiva dos juízes e a confusão entre prova atípica e prova irritual.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça retomou o entendimento de que as formalidades do art. 226 do código de processo penal são garantias (epistemológicas) mínimas para uma correta averiguação dos enunciados fáticos em disputa nos processos criminais. Este novo giro jurisprudencial já tem ecoado em outros tribunais do Brasil, felizmente.

Com efeito, a experiência do reconhecimento de pessoas em nosso país pode oferecer lições preciosas à discussão ampla dos erros judiciários no processo penal.

A primeira lição ora investigada diz respeito à importância da legalidade probatória, que, longe de consistir em formalismo vazio, consiste em garantia para o imputado tanto quanto para um sistema de justiça criminal preocupado em evitar a condenação de inocentes. A aposta na superioridade moral e cognitiva dos juízes como remédio para as ilegalidades no âmbito da prova é equivocada, na medida em que i) desconsidera a natureza excludente do direito; ii) ignora o papel da mediação organizacional no processo penal; e iii) esquece que um sistema de garantias nunca pode fundar-se na maior capacidade pessoal do juiz, mas deve, sim, estar alicerçado na imposição de limites à atividade jurisdicional para evitar a arbitrariedade.

A segunda lição relaciona-se com a necessidade de os debates legislativos, jurisprudenciais e doutrinários sobre os meios de prova se pautarem nos avanços científicos vinculados a cada matéria. Essa é uma lição importante que deveria ser levada em conta por todos os envolvidos no sistema de justiça criminal; no Brasil, sobretudo enquanto se discute no Congresso Nacional a reforma do código de processo penal.

É preciso levar o erro judiciário a sério, e isto implica tentar ao máximo evitá-lo (ainda mais no que se refere à condenação/prisão de inocentes). Como afirmara Beccaria em relação aos crimes, mais vale prevenir o erro judiciário que remediá-lo. Esse deve ser mesmo um dos principais objetivos de qualquer bom sistema de justiça criminal.

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1 Sobre a relação entre prova e verdade, ver: Ferrer Beltrán (2005, p. 55 e ss.).

2 Ver, sobre o tema: Sancinetti (2013, p. 3-6).

3 Nesse sentido, ver a rica obra de João Martins de Oliveira (1967), com a indicação de longa lista de casos de erros judiciários no Brasil e em outros países. Discutindo o tema fora do âmbito da revisão criminal: Barros (1987a).

4 Nesse sentido: Franceschini (1969); Mossin (1997). Ao revés, Frederico Marques (1965) defendia: «[a] aplicação dos preceitos sôbre a revisão criminal deve, enfim, ser feita com bastante amplitude, uma vez que não se pode admitir, no Estado de direito, que o êrro judicial possa perpetrar-se em prejuízo dos direitos e garantias individuais».

5 Sobre o tema, por todos e com ampla bibliografia: Ferrer Beltrán (2021, p. 115 e ss.).

6 Para uma breve história do chamado Innocence Movement, ver: Norris et al. (2018, p. 5-12). Interessante conferir também: Duce (2022).

7 A vasta lista de trabalhos técnicos da Prof.ª Lilian Stein pode ser consultada em seu currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5510256768554836. Entre seus alunos, cujas pesquisas foram por ela orientadas, destacam-se Gustavo Noronha de Ávila (Unicesumar) e William Weber Cecconello (IMED).

8 É de se destacar ainda a contribuição que vem sendo dada pela Polícia Civil de alguns Estados brasileiros, como as de Santa Catarina e de São Paulo, que por meio de suas Academias de Polícia oferecem cursos de capacitação e espaços de debate sobre o tema.

9 O relatório final do referido Grupo de Trabalho do CNJ é um rico documento, seja do ponto de vista descritivo seja do ponto de vista prescritivo, sobre o erro no reconhecimento de pessoas no Brasil: Conselho Nacional de Justiça (2022).

10 Algumas advertências devem ser feitas desde já. Não se pretende aqui realizar uma investigação empírica das decisões dos tribunais brasileiros sobre reconhecimento de pessoas desde 1941, o que exigiria maiores cuidados metodológicos e excederia o escopo deste trabalho. O que se pretende tão somente é traçar, em linhas gerais, a trajetória da jurisprudência brasileira no tocante à obrigatoriedade dos requisitos do art. 226 do código de processo penal brasileiro e as consequências de sua flexibilização na virada do século.

11 Este ponto não passou despercebido pela doutrina brasileira, como se pode ver em Campos Barros, ao comentar que o nosso art. 226 «deixa muito a desejar frente ao Código Italiano, principalmente no que concerne às perguntas a serem feitas ao reconhecedor» (Barros, 1987b, p. 499).

12 Quanto à sugestionabilidade do método empregado, destacava o autor francês: «É fácil de compreender que a pergunta: ‘É este o culpado?’ oferece um efeito sugestivo muito mais forte que a pergunta: ‘Se encontra entre estas dez pessoas o culpado? Quem é?’» (Gorphe, 2003, p. 285, tradução livre).

13 Além do clássico livro de Gorphe, há que se destacar o trabalho Il riconoscimento e la ricognizione delle persone e delle cose de Enrico Altavilla, publicado em 1934 como apêndice ao seu La psicologia giudiziaria (2007, p. 367-402).

14 As três decisões mencionadas são citadas em: Camargo Aranha (1987, p. 175-176).

15 HC 42.957. 2ª Turma do STF. Rel.: Min. Aliomar Baleeiro. Julgamento em: 17 de maio de 1966.

16 RHC 47.465. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Aliomar Baleeiro. Julgamento em: 13 de novembro de 1969.

17 Todas citadas em: Camargo Aranha (1987, p. 176-177).

18 Em defesa do que chamou de «cuidados elogiáveis» e repudiando a prática «em que o indiciado era apresentado isoladamente no meio de dois policiais [...] e, às vezes, a autoridade, apontando para o que vinha escoltado, ainda perguntava sugestivamente: —Não é este o acusado?» (Franco, 1944, p. 16-17).

19 HC 70.936. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em: 8 de novembro de 1994. No mesmo sentido: HC 74.704. Plenário do STF. Rel.: Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 19 de dezembro de 1996; HC 75.331. Segunda Turma do STF. Rel.: Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 2 de dezembro de 1997. No início da década 1990 já era possível encontrar votos (cf. os debates no julgamento do mencionado HC 74.704) e julgados que tendiam à flexibilização do art. 226 do código de processo penal. Nesse sentido, com apoio em doutrina que compreendia se tratar apenas de recomendação legal e mencionando a função do princípio do livre convencimento pelo juiz: HC 68.819. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Celso de Mello. Julgamento em: 5 de novembro de 1991. A adesão a tal posicionamento, porém, não parecia tão forte, porque o caso envolvia suspeito que foi encontrado com o produto e os instrumentos do crime em sua residência. Tal circunstância levou à conclusão de que o próprio reconhecimento seria desnecessário, motivo pelo qual o desrespeito às formalidades legais não conduziria a qualquer ilegalidade.

20 HC 57.355. 2ª Turma do STF. Rel.: Min. Cordeiro Guerra. Julgamento em: 20 de novembro de 1979; HC 68.610. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Celso de Mello. Julgamento em: 18 de junho 1991; HC 69.203. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Moreira Alves. Julgamento em: 7 de abril de 1992; HC 73.688. 2ª Turma do STF. Rel.: Min. Carlos Velloso. Julgamento em: 13 de junho de 1996; REsp 143.061. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. Julgamento em: 25 de novembro de 1997.

21 RHC 8.980. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. José Arnaldo da Fonseca. Julgamento em: 18 de novembro de 1999; HC 22.907/SP. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Felix Fischer. Julgamento em: 10 de junho de 2003. Sob o argumento de existência de outras provas incriminatórias, a regra do art. 226 do código de processo penal já havia sido flexibilizada em acórdão do STJ do início da década de 1990: REsp 1.955. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. José Cândido. Julgamento em: 18 de dezembro de 1990.

22 HC 77.576. 2ª Turma do STF. Rel.: Min. Nelson Jobim. Julgamento em: 2 de fevereiro de 1999. É muito interessante ler o debate entre o Min. Relator e o Min. Marco Aurélio. Destacamos o seguinte trecho, bastante elucidativo: «– O Sr. Ministro Nelson Jobim (relator): Ele foi reconhecido na audiência pelas próprias vítimas. Qual, então, a razão de se discutir o reconhecimento, pedindo os autos principais para reexaminar uma representação, um auto de queixa? – O Sr. Ministro Marcio Aurélio: A problemática não é essa. Houve uma opção político-legislativa e impôs-se formalidade para chegar-se ao reconhecimento de pessoa envolvida em procedimento glosado penalmente. Para quê? Penduricalhos? Para serem colocadas em plano secundário, conforme diligência maior na persecução criminal, não do Estado-acusador, mas desse ou daquele juiz? – O Sr. Ministro Nelson Jobim (relator): Quer dizer que o que se fez em juízo não vale nada? O reconhecimento que se fez não vale? – O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não vale. O juiz não pode fechar o Código de Processo penal e decidir segundo critérios que eleja de acordo com as circunstâncias reinantes. O nosso direito é um direito posto» (itálico nosso).

23 RHC 8.594. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Felix Fischer. Julgamento em: 17 de agosto de 1999; HC 18.996. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Jorge Scartezzini. Julgamento em: 20 de junho de 2002; HC 41.813. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Gilson Dipp. Julgamento em: 5 de maio de 2005; HC 302.302. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Gurgel de Faria. Julgamento em: 15 de setembro de 2015; EDcl no AgRg no AResp 1.238.085. 5ª Turma do STJ. Rel.: Min. Jorge Mussi. Julgamento em: 21 de março de 2019; AgRg no Ag em REsp nº 1.376.249/SP. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. Laurita Vaz. Julgamento em: 21 de fevereiro de 2019; AgRg no AgRg no Ag em REspl nº 1.585.502/SP. 5ª Turma do STJ. Rel.: Joel Ilan Paciornik. Julgamento em: 06 de fevereiro de 2020.

24 Conforme glossário apresentado em relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (2022, p. 18), o álbum de suspeitos é uma «espécie de conjunto de fotos, impressas ou em arquivo digital, de pessoas consideradas a priori suspeitas de cometerem crimes ou com antecedentes criminais».

25 Conforme o glossário mencionado acima, por show-up se considera o «procedimento por meio do qual um único suspeito é apresentado isoladamente para que a testemunha indique se este rosto corresponde ao autor do crime» (Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2022, p. 19).

26 HC 598.886. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Julgamento em: 27 de outubro de 2020.

27 Veja-se a pesquisa realizada pelo Gabinete do Min. Rogerio Schietti Cruz. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/STJ%20Pesquisa%20sobre%20reconhecimento%20formal.pdf. Consultado em 22 de fevereiro de 2022.

28 RHC 176.025. 1ª Turma do STF. Rel.: Min. Marco Aurélio. Redator do acórdão: Min. Alexandre de Morais. Julgamento em: 03 de março de 2021; RHC 206.846. 2ª Turma do STF. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Julgamento em: 22 de fevereiro de 2022.

29 TJRJ. Aviso da 2ª Vice-Presidência nº 01/2022. Diário de Justiça Eletrônico, ano 14, nº 85/2022, Caderno I – Administrativo, p. 92. Data: 7 de janeiro de 2022.

30 Respectivamente: Apel. Crim. 1509490-21.2020.8.26.0050. 16ª Câmara de Direito Criminal do TJSP. Rel.: Des. Marcos Alexandre Coelho Zilli. Julgamento em: 1º de junho de 2021; Apel. Crim. 0006583-22.2017.8.06.0144. 3ª Câmara Criminal do TJCE. Rel.: Min. Marlúcia de Araújo Bezerra. Julgamento em: 28 de setembro de 2021; Rev. Criminal 0069552-52.2020.8.19.0000. 4º Grupo de Câmaras Criminais do TJRJ. Rel.: Des. Suely Lopes Magalhães. Redatora designada: Des. Maria Angélica G. G. Guedes. Julgamento em: 02 de setembro de 2021; Apel. Crim. 1003989-57.2018.4.01.3700. 3ª Turma do TRF-1. Rel.: Des. Maria do Carmo Cardoso. Julgamento em: 23 de novembro de 2021; Apel. Criminal 5005606-24.2020.4.02.5110. 1ª Turma Especializada do TRF-2. Rel.: Des. Simone Schreiber. Julgamento em: 16 de fevereiro de 2022.

31 HC 712.781. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Julgamento em: 17 de março de 2022.

32 Como refere Aury Lopes Jr. (2017, p. 72): «no processo penal, forma é garantia e limite do poder». Ver, ainda, a profícua visão de Ennio Amodio (2003, p. 123-124), para quem a teoria romântica da prova moral fez nascer um fenômeno degenerativo que tornou possível, numa cultura inquisitória, o uso da liberdade de convencimento como instrumento para justificar a superação de qualquer limite na admissão e produção da prova.

33 É inevitável relacionar este entendimento às concepções instrumentalistas do processo. Cândido Rangel Dinamarco (2003, p. 165, itálico nosso), seu mais famoso representante no país, argumenta: «O ‘prejuízo’, sem o qual nulidade alguma se pronuncia, é apenas o dano causado aos objetivos da participação contraditória; onde o procedimento ficar maculado mas ilesa saia a garantia de participação, cerceamento algum houve à ‘defesa’ da parte. Cabe ao juiz até, ao contrário, amoldar os procedimentos segundo as conveniências do caso».

34 É famosa a frase de Susan Haack (2014, p. 28, tradução livre): «o direito está imerso até o pescoço na epistemologia».

35 Como exemplo positivo, a contribuição feita por vários especialistas no que se refere ao próprio reconhecimento de pessoas e à cadeia de custódia das provas digitais, que deram ensejo, respectivamente, aos Projetos de Lei 676/2021 (já aprovado pelo Senador Federal nos termos do substitutivo de autoria do Senador Alessandro Vieira) e 4.291/2020 (proposto pela Deputada Margarete Coelho).

36 Aqui, além das instituições mencionadas na introdução, é preciso destacar a participação da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que vêm contribuindo decisivamente com estes debates.

37 Segundo Mazzoni (2019, p. 18, tradução livre), a psicologia do testemunho consiste em uma disciplina que «representa a aplicação da investigação psicológica ao âmbito do testemunho e, relativamente à investigação psicológica mais geral, examina em particular os seguintes pontos: – os processos perceptivos, atencionais e de memória que formam parte da codificação de um evento também carregado de emoção; – os processos perceptivos e de memória que intervêm na identificação do culpado, e da idoneidade dos procedimentos adotados para este fim; – a mentira intencional: as capacidades da pessoa que mente e a identificação da mentira; – os processo de tomada de decisões implicados no momento de estabelecer a credibilidade de um testemunho e a culpabilidade de um indivíduo; – o efeito dos interrogatórios (entrevistas de “investigação”) sobre a recordação e sobre a declaração; – a sugestionabilidade e outras características individuais e seu papel na recordação e no testemunho; – o exame da veracidade do testemunho; – as questões relativas à valoração da capacidade para testemunhar e da credibilidade da declaração da testemunha».

38 Em 1978, Wells propôs a distinção entre system variables (variáveis do sistema) e estimator variables (variáveis a estimar ou de estimação), nomenclatura adotada com relativo consenso pelos especialistas (Wells, 1978; Diges e Pérez-Mata, 2014; Manzanero, 2018; Cecconello e Stein, 2020; Cecconello et al., 2022).

39 Valemo-nos novamente do glossário do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (2022, p. 18), que descreve o alinhamento como «procedimento no qual o suspeito é apresentado em meio a outros rostos/pessoas. A principal diferença entre um alinhamento justo e o álbum de suspeitos é o controle. No alinhamento é apresentado somente um suspeito, sendo os demais rostos sabidamente inocentes (i.e., fillers). Em um alinhamento justo, os fillers são selecionados com base na descrição do autor do crime ou na semelhança com o suspeito, de modo que nenhum dos rostos se sobressaia dentre os demais».

40 Não se ignora que a realização de um alinhamento presencial justo pode ser uma tarefa complexa, custosa e até inviável em determinadas situações. Não à toa, os especialistas vêm se dedicando a estudar os efeitos do alinhamento fotográfico, a fim de facilitar a sua realização. Citando o já mencionado trabalho de Valentine e Fitzgerald, Cecconello e Stein (2020, p. 180) argumentam: «o reconhecimento através de fotografias tem se mostrado tão eficaz quanto o reconhecimento feito presencialmente, além de possibilitar padronizar características do suspeito e não-suspeitos como vestimentas e ou características distintas como uma cicatriz (Valentine, & Fitzgerald, 2016)». Sobre o tema, com indicação de bibliografia e contribuições: Matida e Cecconello (2021, p. 425-431).

41 A problemática fica clara em exemplo dado por Gascón Abellán (2022, p. 29), com sua peculiar didática: «Rigorosamente analisada, a declaração da testemunha Ta: “vi A atirar em B e este último cair morto” [...] não prova por si só (direta e espontaneamente, sem necessidade de raciocínio) o fato que se pretende provar (que A matou B). A única coisa que esta declaração prova por si só é que “a testemunha Ta afirma que viu A atirar em B e este último cair morto”. A declaração de Ta provará que “A matou B” apenas se Ta estiver dizendo a verdade (ou seja, se não estiver mentindo, nem sofreu um erro de percepção ou muito menos sofre agora de erros de memória».

42 Além da experiência dos EUA, cuja bibliografia é vasta, convém destacar a experiência chilena (Cfr. Duce, 2017), bem como, no plano normativo, o Code of Practice for the identification of persons by Police Officers do Reino Unido, o Evidence Act 2006 da Nova Zelândia (arts. 45-46-A) e o Codice di procedura penale da Itália (arts. 213-217). Um bom panorama da situação na Espanha pode ser visto em: Obach Martínez; García Martinez (2014). Para uma análise comparativa entre vários países, é fundamental conferir: Fitzgerald et al. (2021).

43 Relativamente às provas periciais, ver, por todos: Vázquez (2015); Garrett (2021); Lourenço e Silva (2021); Gennari (2021). Sobre as provas digitais, ver: Badaró (2021); Cardona Pérez (2020); Polansky (2020); Prado (2022); Costabile (2021). Quanto à prova documental: Ramos (2021).